No último domingo, durante o tradicional Governors’ Ball realizado na Casa Branca, um momento inusitado e carregado de simbolismo histórico chamou atenção. O Coral do Exército dos Estados Unidos se apresentou em uma performance musical que, em qualquer outro contexto, poderia ter sido apenas um número cultural bem executado. No entanto, a escolha da canção — Do You Hear the People Sing? (Você ouve o povo cantar?) do musical Les Misérables, baseado no romance Os Miseráveis de Victor Hugo — imediatamente levantou questionamentos e se tornou um dos momentos mais politicamente carregados da noite.
A apresentação aconteceu sob o olhar atento de Donald Trump, anfitrião do evento, e de um grupo de governadores estaduais, muitos deles alinhados à agenda política de extrema-direita republicana representada pelo presidente. A canção, originalmente composta por Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil, é um dos grandes hinos revolucionários da cultura popular e tem sido historicamente associada a levantes contra regimes autoritários e movimentos de resistência ao longo das décadas desde o momento em que atingiu fama na década de 80 nos palcos de Londres e Nova York. A música famosamente tem como parte de sua letra frases como a conhecidíssima “Mesmo a noite mais sombria vai terminar, e o sol nascerá outra vez”.
Diante desse contexto, a escolha do repertório gerou reações imediatas, com parte da imprensa e do público interpretando a performance como um ato velado de protesto contra o presidente, cujas tendências autoritárias e retórica neofascista têm sido amplamente criticadas dentro e fora dos Estados Unidos.
Os Miseráveis de Victor Hugo
“Os Miseráveis”, obra prima do célebre escritor francês Victor Hugo, é um dos maiores marcos não apenas da literatura francesa, mas do teatro ao redor do mundo – sendo a obra musical mais longeva da história, em cartaz à quase quarenta anos. O enorme romance de 1862 – carinhosamente apelidado de “O Tijolo” por seus fãs mais apaixonados – é uma obra da maturidade de Victor Hugo, extremamente diferente de seu outro grande trabalho, “Notre Dame de Paris” – popularmente, mais conhecido como “O Corcunda de Notre Dame” – que escreveu quando ainda estava na casa dos 20 anos. O livro é universalmente considerado uma das maiores obras do século XIX, examinando temas como a natureza da justiça e da lei, o caminho da redenção, abusos de poder, autoritarismo e o sofrimento dos pobres e destituídos em um trabalho artístico monumental que fala, ainda, de história, religião, arquitetura, urbanismo, política, filosofia, moral e ativismo – além, é claro, de seu tema central: o amor, seja ele familiar, fraternal, romântico ou mesmo divino.
O romance acompanha a vida de Jean Valjean, um ex-presidiário que passou dezenove anos nas galés após roubar um pedaço de pão para alimentar os filhos famintos de sua irmã. Após uma atitude de extrema caridade de um bispo, Valjean decide mudar completamente sua vida em busca de redenção – e, para isso, quebra sua condicional, se tornando um fugitivo da lei. O inspetor Javert, principal antagonista da narrativa, contudo, é incapaz de deixar que esse homem escape da justiça, e o persegue incansavelmente. Ao longo de vinte anos, Hugo leva seu leitor pela história não apenas de Valjean e de Javert, mas também de um elenco de personagens cujas vidas se entrelaçam nas muitas faces da miséria humana. Suas personagens retratam questões que vão desde a prostituição de mulheres em situação de miséria até crianças em situação de rua, atravessando temas de fanatismo político, crimes de fome, repressão religiosa e ativismo revolucionário.
Há muitos que acreditam erroneamente que “Os Miseráveis” é um romance da Revolução Francesa. Outros, que se passa na Revolução de 1848. Na realidade, o livro começa em 1815, com a derrota última de Napoleão, e tem como clímax a Rebelião de 1832 – uma revolta malsucedida e relativamente pequena que visava derrubar a Monarquia de Julho, e que teria permanecido largamente obscura para a posteridade, se não fosse o trabalho de Hugo, que a alçou à fama. O próprio escritor estava presente no evento, vendo-se envolvido quase que sem querer na luta ao passar cerca de quinze minutos entre o fogo-cruzado, escondido precariamente entre colunas para evitar ser baleado.
Victor Hugo, conhecido por suas políticas progressistas e por seu ferrenho ativismo republicano, se coloca claramente do lado dos revolucionários – Enjolras, o líder ficcional da Barricada de Saint-Dennis, e Gavroche, o moleque de rua de Paris, são dois de seus maiores e mais icônicos personagens, e muitos de seus outros heróis – dentre eles o próprio Jean Valjean, e também personagens como Marius Pontmercy e Éponine Thenardier – se envolvem na luta ao lado dos revoltosos. Javert, o antagonista, atua como espião para o exército.
Um hino de resistência e sua ironia política
A música Do You Hear the People Sing? tem um significado que ultrapassa os limites do teatro musical. Na narrativa de LOs Miseráveis, a canção é entoada por revolucionários parisienses enquanto se levantam contra um governo opressor. É um chamado à resistência, um grito de desafio contra a tirania e uma exaltação da luta popular por liberdade – além de, dentro da narrativa, representar, literalmente, a convocação às armas dos revolucionários, indicando o começo da revolta.
Historicamente, a canção já foi utilizada em diversos contextos de protesto ao redor do mundo, desde a Revolução Umbrella em Hong Kong até manifestações contra regimes autoritários na América Latina e no Oriente Médio. Sua melodia grandiosa e sua letra inflamada evocam o espírito de revoluções populares, tornando sua execução em um evento oficial da Casa Branca sob a administração Trump particularmente simbólica.
Leia aqui a letra da canção:
“Você ouve o povo cantar?
Cantando a música dos homens com raiva
É a música de um povo que não será escravo outra vez
Quando a batida do seu coração
Ecoar a batida dos tambores
Há uma vida prestes a começar quando chegar o amanhã
Você ouve o povo cantar?
Perdidos no vale sombrio da noite
É a música de um povo que está se arrastando para a luz
Para os miseráveis da terra
Há uma chama que nunca morre
Mesmo a noite mais escura vai terminar, e o sol vai surgir.
Eles viverão em liberdade novamente nos jardins do Senhor
Ele vão andar atrás dos arados
Eles vão guardar as espadas
As correntes serão quebradas e todos os homens terão sua recompensa!
Você se juntará a nossa crusada?
Quem será forte e ficará de pé comigo?
Em algum lugar além da barricada, há um mundo que você deseja ver?
Você ouve as pessoas cantando?
Me diga, você ouve os tambores distantes?
É o futuro que eles trazem quando o amanhã chegar”
Para completar a apresentação, o coral cantou ainda a parte final da música “One Day More” (“Só Mais Um Dia”), também de “Os Miseráveis”, que no musical representa a preparação de todos os personagens para o começo da revolução, que acontecerá no dia seguinte. É nessa cena que acontece a mais famosa imagem de Os Miseráveis – Enjolras, o líder revolucionário, à frente de um grupo de estudantes marchando com a bandeira vermelha e chamando seus companheiros à revolução. A parte escolhida pelo coral (difícil de transcrever por completo, por incluir linhas de vários personagens cantadas simultaneamente), inclui o seguinte excerto:
“A hora é agora,
O dia chegou
Só mais um dia
Amanhã é o dia do julgamento
Amanhã descobriremos o que o nosso Senhor no paraíso tem reservado para nós
Só mais um amanhecer
Só mais um dia
Só um dia mais”
O ex-presidente, que construiu sua carreira política explorando discursos nacionalistas, ataques à imprensa e ameaças veladas ao sistema democrático, encontrou-se inesperadamente diante de um dos hinos mais emblemáticos da luta contra opressores. O contraste não passou despercebido: o Coral do Exército Americano, instituição que responde diretamente ao governo federal, interpretava uma música que, no contexto atual, podia ser lida como uma crítica ao próprio anfitrião do evento.
Coincidência ou mensagem velada?
A escolha da canção rapidamente gerou especulações. Havia sido um erro de leitura por parte dos organizadores? Um lapso de interpretação? Ou um ato deliberado de resistência interna dentro das Forças Armadas?
A relação entre Trump e o alto escalão militar tem sido, no mínimo, tensa. Durante sua última presidência, o republicano não hesitou em confrontar generais e ex-chefes das Forças Armadas, muitas vezes criticando publicamente aqueles que não seguiam sua linha política. Em 2020, no auge dos protestos do movimento Black Lives Matter, militares de alto escalão, incluindo o então secretário de Defesa Mark Esper e o general Mark Milley, distanciaram-se de Trump após sua decisão de usar forças federais contra manifestantes pacíficos em Washington.
Além disso, durante a campanha de 2024, Trump foi reiteradamente criticado por sugerir que, caso eleito novamente, utilizaria as Forças Armadas para fins políticos internos, algo que tem reiterado desde sua posse. Seu discurso frequentemente evoca um tom autoritário, com promessas de vingança contra adversários e um desprezo aberto por normas democráticas, além, é claro, de seu alinhamento com figuras cada vez mais confortáveis em fazer gestos nazi-fascistas abertamente, em público.
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Diante desse cenário, a apresentação do Coral do Exército Americano não parece ter sido apenas uma escolha aleatória de repertório. Embora não tenha havido uma declaração oficial sobre a intenção por trás da performance, sua repercussão imediata nas redes sociais e na imprensa sugere que a mensagem foi compreendida por muitos como um ato de sutil resistência dentro de um evento projetado para exibir poder e unidade. A situação foi amplamente noticiada nos Estados Unidos, e o primeiro vídeo da performance a viralizar já passou da marca de oito milhões e meio de visualizações e 12.000 comentários.
A performance rapidamente se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, com reações divididas. Enquanto apoiadores de Trump tentavam minimizar o significado da escolha musical, críticos do ex-presidente apontavam a ironia da situação. A imprensa internacional também destacou a estranheza do momento. Veículos como o Daily Beast, The Inquirer e People trouxeram análises sobre “Os Miseráveis”, a simbologia da canção e seu histórico de uso em protestos. Alguns comentaristas chegaram a comparar a apresentação a uma espécie de “dissonância cognitiva”, na qual um líder com tendências autoritárias era “homenageado” com um hino tradicionalmente cantado contra esse tipo de regime.
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A cultura como ferramenta de contestação
Não seria a primeira vez que uma obra artística é ressignificada em um contexto político. Les Misérables, baseado no romance de Victor Hugo, sempre carregou um peso simbólico de revolta contra a injustiça social e o autoritarismo. A obra de Hugo, escrita em 1862, denuncia a repressão estatal e exalta aqueles que desafiam a ordem estabelecida em nome de um ideal mais justo. A adaptação musical lançada em 1980 manteve esse espírito de contestação, e suas músicas se tornaram verdadeiros hinos para movimentos revolucionários ao redor do mundo. Do You Hear the People Sing? foi cantada em praças, protestos e manifestações contra ditaduras e governos opressores, tornando-se um símbolo universal de resistência. Sua execução na Casa Branca sob Trump, portanto, carrega um peso que vai além do entretenimento. Se houve ou não uma intenção deliberada por parte dos organizadores, o fato é que a performance dialogou diretamente com o momento político dos Estados Unidos.
Assista a apresentação aqui:
A ascensão do trumpismo, com sua retórica autoritária e sua recusa em aceitar os resultados eleitorais de 2020, gerou preocupações sobre o futuro da democracia americana. O ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 expôs os riscos de um discurso que mina instituições democráticas e incentiva a insurreição popular em favor de um líder. A apresentação de Do You Hear the People Sing? nesse contexto pode ser lida como um lembrete involuntário – ou intencional – do que acontece quando um governo se desconecta do povo e usa sua posição para minar as liberdades fundamentais.
O simbolismo de um momento inesperado
Se houve ou não uma intenção política por trás da apresentação do Coral do Exército Americano, o episódio revela o poder da cultura como ferramenta de contestação. Em tempos de crescente polarização política e ameaça às instituições democráticas, a música, a literatura e as artes continuam desempenhando um papel fundamental na forma como sociedades expressam resistência e descontentamento.
A história já demonstrou inúmeras vezes que a arte revolucionária não pode ser domesticada; ela carrega significados que transcendem seus intérpretes e continuam a ecoar em momentos históricos decisivos. Já na abertura de seu Os Miseráveis, Victor Hugo escreveu que “Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não foram resolvidos os três problemas fundamentais: a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza”. Mais uma vez, ele se prova certo: no Governors’ Ball de 2025, a Casa Branca testemunhou um pouco da utilidade atemporal de Os Miseráveism, mais atual que nunca — um instante no qual uma simples performance musical se transformou em um poderoso lembrete do que significa desafiar a tirania.