“Voladoras”, Monica Ojeda: contos insólitos equatorianos imaginam o mundo através das desigualdades de gênero

Em “Voladoras”, Monica Ojeda imagina o insólito através do imaginário equatoriano da perspectiva feminina

O fantástico da América Latina vem ganhando uma nova reinvenção dentro de si própria. Trata-se de uma espécie de realismo fantástico de terror e horror, escrito por mulheres, cuja estrutura básica do horror fantástico está nas desigualdades de gêneros de um mundo patriarcal que determina as regras do jogo. Dentro deste mundo, que é inexplicavelmente violento para mulheres, explicações nem sempre realistas surgem, muitas delas através de narrativas que remetem a sabedores ancestrais ou tradicionais que visam dar sentido a uma realidade que não se pode explicar. 

Hoje, vou falar de uma dessas obras que vem sendo celebrada por leitores e leitoras latinas: Voladoras, da escritora equatoriana Mónica Ojeda. Voladoras, que saiu pela editora Autêntica Contemporânea em 2023, com tradução de Silvia Massimini Felix, é uma reunião de 8 contos que se encaixam na definição que dei anteriormente: o fantástico e o insólito como recurso narrativo para narrar experiências de mulheres dentro de sociedades conservadores de nossa América Latina, neste caso, do Equador. 

Porém, é interessante notar que nem todas as personagens são mulheres. A ideia, me parece, é que esta experiência de uma violência estrutural componha a linha básica de sustentação das narrativas, cujas personagens, frágeis, precisem atravessar. Um dos exemplos é o conto inicial que é também aquele que dá nome ao livro “Voladoras”. 

As Voladoras seriam seres femininos que invadem a casa onde a personagem feminina habita com a família. Porém, de forma cambiante, esses seres fantásticos conseguem burlar as regras do mundo e escapar a tudo. Ojeda descreve-as como “mulheres normais” que possuem apenas um olho, “como os ciclopes” e, com seus cabelos pretos, tal como bruxas, entram pelas janelas reais e dos sonhos. Com uma espécie de acolhimento da personagem, Ojeda diz:

“a voladora é a floresta entrando em nossa casa, e isso nunca tinha acontecido. Nunca havíamos sentido o delírio divino tão próximo do desejo. Porque no fundo, acredite, estou falando do desejo de Deus: o mistério mais absoluto da natureza.”

Este ser acompanha a trajetória da personagem, some quando ela menstrua pela primeira vez, é enterrada pela mãe no quintal, recebe leite como alimento, mas sempre volta. Como uma espécie de companhia feminina mágica do além, a voladora é uma forma de resistência constante que não escapa jamais. Que se alimenta da casa, da rebeldia que ainda há na casa, e resiste às forças do mundo. Ela permite à personagem uma liberdade:

“Não tenho vergonha do tamanho dos meus quadrinhos. Não baixo a voz. Não tenho medo da pelagem. Subo ao telhado com as axilas úmidas e abro os braços ao vento.
O mistério é uma prece que se impõe.”

O segundo conto, na mesma linha, se chama Sangue coagulado e trata de uma jovem, criada pela avó que, em sua casa, recebe mulheres que buscam fazer o aborto. Chamada de “Réptil”, essa personagem vê o mundo através das lentes do sangue que escorreu durante anos nos bastidores de sua vida. 

Uma das características interessantes, é que Ojeda explora as texturas da cor vermelha no conto, como se a experiência do sangue desse tonalidades novas para as cores que vão desde:

“vermelho escara
vermelho terreno
vermelho agulha
vermelho raspão”.

A forma mais complexas como:

“Vermelho cabelo de árvore.
Vermelho cabeça de montanha. (…)
Sangue vermelho de argila
Sangue vermelho de vinho.”

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O conto inteiro, assim, passa por uma relação complexa entre cores, vida, morte, sangue e vermelho. Adicionando os tabus da sociedade com o sangue das mulheres, se incorpora também uma espécie de culpa primordial de ser mulher e ter este corpo:

“Sei que o líquido que brota de mim é sujo e transparente. Sei que isso faz com que eu me esfregue onde não devo e que cresce quando faço cortes nas pernas e nos pés”.

Em um dos dos meus contos preferidos, Soroche, Mônica Ojeda transcreve a vida de uma mulher que, após ter um vídeo íntimo exposto pelo marido, foi acolhida por suas amigas que lhe levaram para uma viagem por uma montanha. Lá, porém, elas entraram em contato com o que seria o “soroche”, uma espécie de estado mental alterado pela caminhada e pela altitude que muda a relação das pessoas com o real.

O resultado é que a mulher que era para ser acolhida acaba tentando o suicídio, mas escapa. Assim, a narrativa se alterna em pequenas narrações de cada uma das personagens sobre aquele evento e sobre o caso da exposição do corpo da mulher em vídeo: uma mulher gorda, que se descreve da forma mais horrível possível. O soroche, assim, é influência do narrar pois instaura aquele que poderíamos chamar de “estrutura do fantástico”, ainda que a grande questão do conto esteja na violência brutal e real de ser mulher, ter um corpo e vê-lo violado das mais diversas formas. 

Mônica Ojeda, sem dúvida, é uma das autoras que mais recombina com alegria esses elementos para compor seus contos. Com controle narrativo, suas descrições que beiram o gore também convocam um horror das estruturas sociais, ao mesmo tempo que lhes dá tons poéticos nas linhas de fugas possíveis de construção. 

Voladoras, como ela mesma diz, é uma geografia, a tentativa de traçar uma descrição, um mapa de vivências marginalizadas em uma Equador que não aparece nas grandes fotografias. Com personagens terríveis, mas também sofredores, Ojeda humaniza as dores e as exclusões, dando a elas tons mágicos que fazem o mundo se tornar um pouco mais suportável. Quando sumir a magia, acredite, só vai sobrar a violência.

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