“Nem te conto, João”: Dalton Trevisan escancara violências de gênero através de mulher que desabafa com seu “Sugar Daddy”

Após a morte de Dalton Trevisan, confesso que fui capturado pelo seu mistério. Mais do que por suas histórias, foi a ausência de histórias do chamado “vampiro de Curitiba” que me diziam algo, pois, em um universo em que todo mundo diz tanto, alguém que fala por subtração, como Raduan Nassar, outro escritor avesso à verborragia contemporânea, é um grande mistério descobrir as migalhas de palavras que um autor nos dá. 

No caso de Dalton Trevisan, logo compreendi que subtração era método que ele próprio relatou em seus poucos relatos e entrevistas: a cada vez que lia e relia, ia retirando tudo, até ficar só o essencial, como se uma fruta fosse feita só da polpa, sem casca, sem gomos, sem sementes. De fato, assim Dalton o fez, inclusive na escolha dos gêneros nos quais escreveu: o conto, a novela, sendo a novela seu esforço máximo para atingir um gênero robusto.

Pois foi justamente em duas de suas novelas que me debrucei, em uma escolha que se deu por mero acaso: fui em um sebo e foram elas que estavam disponíveis no momento. A primeira delas é Mirinha e a segunda delas, que escrevo aqui hoje, é Nem te conto, João, de 2011, publicada pela L&PM Pocket. 

O livro conta a história de uma jovem, Maria, que se encontra com um homem mais velho, João, um homem casado com quem troca pequenos favores sexuais. Nesses encontros, meio devassos meio confessionais, ela conta todos os detalhes de sua vida, principalmente os fracassados casos amorosos. 

Permanecendo virgem, Maria vai mantendo o desejo de João sempre pulsante, sempre renovado, ao mesmo tempo em que deixa incompleta a tarefa final que o velho deseja: o seu corpo por inteiro. Para isso, João precisa de uma coisa: ouvir essas suas histórias que são contadas dia após dia, encontro após encontro, sempre sendo interrompidas por alguma pequena tara, sempre sendo renovada por novos capítulos. 

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O que mais chama atenção na obra, como dito anteriormente, é a concisão com que Trevisan escreve suas histórias. No caso de Nem te conto, João o que temos são apenas os diálogos entre João e Maria, de modo que todas as informações que recebemos daqueles encontros são nos dadas aos poucos, soltas furtivamente em meio aos diálogos. Ao mesmo tempo, esses mesmos diálogos evitam essas descrições, de modo que quase sempre já começam do cerne da ação, sem interferência a elucubrações ou psicologismos. Em Trevisan tudo é e está pulsante e vivo a todo instante, principalmente os corpos que são levados de um lado para o outro com suas forças e fraquezas. 

Outro ponto curioso do livro é que ele não é inteiramente inédito, mas trata de um intenso trabalho de montagem de Trevisan que costurou a história à partir de ideias e excertos de contos que foram publicados em outros livros seus. Essa estrutura fez com que alguns críticos tenham destacado o fato de que Maria encarnasse uma espécie de Sherazade, a grande narradora da épica oriental. 

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De um lado, temos a “narradora”, a contadora de histórias que mantém o desejo de João aceso todos os dias, não que ela não tivesse desejo também, claro que tinha, mas o objetivo dela ali era mesmo exercer seu poder sobre aquele homem como se ele fosse todos e, através dessas histórias, tirar dele uns trocados. 


Por outro lado, esta mesma narradora é composta de narrativas que, a princípio, não são as suas, mas resultado de recortes de outras histórias que o autor incorporou a elas, de modo que Maria se torna uma figura porosa, que pode a qualquer instante chegar para João e contar o que quiser, quando quiser, pois o que o mantém aceso é propriamente a incapacidade de Maria de finalizar aqueles encontros, finalizar aquelas histórias. 

Nem te conto, João é uma história de muita força. em que Dalton mostra ser um especialista em retratar essas vidinhas ínfimas, pobrinhas, mas repletas de potências. Maria é uma desgraçada pela sorte da vida, pobre, de família confusa, irmã prostituta. Bonitinha. Ela vai sobrevivendo como pode, usando os poucos instrumentos que têm. 

O submundo de Dalton retrata uma vida que nem os autores ditos da esquerda tradicional conseguem alcançar: os que não servem nem para serem pequenos heróis. E o formato dos seus livros são tão enxutos que não conseguem redimir essas pequenas vidas. Cabe a nós sair dos livros e mudar o mundo.

Dalton, confesso, entrou na lista dos meus favoritos da vida.

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