Eurico Cruz (Emilio de Mello) irá morrer, isso é fato. Ele recebe um bilhete anunciando tal evento, assinado somente como “A.”. A assinatura coloca suas duas mulheres sob suspeita, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Cristiana Ubach). Em meio a paranoia, Eurico se perde em devaneios verborrágicos e memórias mal lembradas, enquanto suas mulheres também ficam tensas diante da situação, que as desgasta cada vez mais.
Colocando assim, seria fácil encaixar Aos Pedaços, de Ruy Guerra, como um simples thriller psicológico, com o protagonista buscando desvendar o mistério por trás da ameaça que recebeu. Não deixa de ser o caso, mas a narrativa se desenvolve mais em um campo explicitamente onírico e interno – a narração avisa ser uma voz de dentro de Eurico – do que pelo suspense.
É uma obra que remete muito ao primeiro filme de Ruy Guerra, Os Cafajestes, de 1962, onde, similarmente, o ponto inicial parte de um possível crime, neste caso, uma tentativa de golpe dos protagonistas para reverter um processo de falência, mas que acaba se tornando um confronto existencial no meio de uma praia que parece não ter fim.
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O trabalho com o espaço nos dois filmes é similar, mesmo que em direções opostas. Nos anos 60, os personagens se perdem na escuridão infinita da praia, em Aos Pedaços, os ambientes se transformam a partir da repetição e limitação dos locais, com um jogo muito único entre sombras e luz, fazendo bom uso da fotografia preto e branco de alto contraste.
A fotografia, por vezes, depura os personagens a suas formas mais básicas. É comum cenas onde tudo que se vê é a silhueta de um personagem. Ruy Guerra parece querer testar os limites do quanto um ator pode transmitir quando todo seu corpo está na escuridão. Por outro lado, os closes são frequentemente bem iluminados e detalhados, capturando cada nuance das expressões faciais dos atores, como se o diretor quisesse contrastar a obscuridade das silhuetas com a clareza crua das emoções humanas. Essa dualidade entre luz e sombra não só reforça a tensão psicológica do filme, mas também reflete a própria natureza fragmentada da mente de Eurico, que oscila entre a lucidez e a confusão, entre a realidade e o delírio.
Mas essa construção tão esparsa, composta de cenários pouco caracterizados, personagens muito similares, e, claro, sem cores, parece carregar uma pergunta sobre cinema. O que, afinal, faz um filme “funcionar”? Ruy Guerra depura os elementos da trama a suas formas mais básicas, como alguém que desmonta o aparelho para entender seus mecanismos internos. Aos seus quase 90 anos, Ruy Guerra demonstra muito mais curiosidade do que diretores muito mais jovens, algo sempre interessante de testemunhar.