“Em primeiro lugar, devemos perguntar: tem que ser uma baleia?” escrevia Peter J. Bentley, editor da Bentley & Son Publishing House na Inglaterra, a Herman Melville ao rejeitar Moby Dick em 1851. Essa é uma dentre tantas histórias de rejeições de originais de autores consagrados, além de ser um lembrete de que nada nasce clássico, nada é definitivo na literatura. Inspirado por essas histórias, citando nominalmente James Joyce e Franz Kafka, Vinícius Gonçalves Reis, vencedor do prêmio Trema com o conto A Barca da Garganta, resolveu lançar ao mundo Contos Rejeitados, cuja proposta é exatamente o que o título promete: apresentar narrativas curtas que, nas palavras do autor, “não se dobraram às exigências dos editais e editoras”.
São 13 contos que navegam pelas mais diferentes águas, apesar de elementos em comum, como figuras femininas que aparecem e somem, personagens que devaneiam, personagens fotógrafos que surgem em mais de um conto e a imagem do pássaro, de asas, de vento, que emergem em variados contextos no decorrer das histórias.
Ao longo das 134 páginas da coletânea, somos em diversos momentos convidados a ver o mundo pelas lentes do fantástico. Por vezes, esse fantástico se apresenta com o autor revelando os pensamentos de um gato, como no clássico da literatura japonesa Eu sou um gato, de Natsume Soseki, ou em uma raposa vermelha que guia uma mulher, uma espécie de sábia, ao encontro de suas irmãs para o seu ritual de Chamamento, ao que a raposa se faz em sete, em referência a Kitsune, a raposa de sete caudas do folclore japonês.
Animais da fauna brasileira também aparecem em “distopia animalia”, que traz um futuro distópico no qual “as geleiras vieram ao chão” e as cidades alçaram os céus, e onde é possível um lobo-guará carregar um fuzil ak-47-arbeit em uma cena de ação eletrizante na luta contra o AGRO, que nada tem de pop. A figura do lobo-guará, inclusive, surge em outro conto, “a luz negra nos fins”, como uma Deusa.
Para além desse fantástico relacionado a animais, cenas rotineiras são alçadas a algo maior, mais magnífico, mais belo, mas não necessariamente mais alegre. Em “fúlgido”, por exemplo, a visão dos pássaros ascendendo aos céus em fuga de nossa terra arrasada enquanto o colibri solitário voa na contramão seguindo um grito de socorro é algo belíssimo, mas profundamente melancólico.
Por sinal, a melancolia é traço recorrente nas narrativas, aparecendo mais nitidamente quando o luto é abordado, como em “o trançado”, conto no qual um pano branco vira espuma do mar dentro do coração de um pescador que relata aos peixes a partida de sua esposa.
“Os pés de minha querida. Estes vocês não vão receber de novo aqui.”
Luto e morte andam de mãos dadas, mas nas histórias do Vinícius por vezes a morte é dura, pesada e te acerta em cheio como no conto que abre a coletânea, “gentes”. Nele, o autor explora a sombria sede de “muitas gentes” pelos espetáculos, mesmo que esse seja regado a sangue, ou talvez, principalmente quando esse é regado a sangue.
“O pedreiro está lá observando verdadeiras piranhas à espera de um bocado, um olho no machucado que a mãe não concebe…quem chora não consegue…eu não consigo…, mas tem gentes a ri…gentes que choram, sim, mas acima de tudo, gentes com olhos ávidos por rir…”
A morte também pode aparecer como a Justiça que os homens não foram capazes de alcançar. Ela chega sorrindo enquanto nós também abrimos um sorriso, pois não há neutralidade possível diante da maldade que presenciamos em “o sem-fim”. A terra lembra. A terra se vinga.
Mas Vinícius também sabe dar leveza e graciosidade a ela, como no último conto, “o voo”, quando a veste com asas de uma borboleta para abraçar aqueles cuja hora chegou.
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Outra característica dos contos é o insólito que aparece através de uma aura de sonho que surge aqui e ali, de dúvidas se o que aconteceu com um personagem foi real ou não. Vinícius brinca com essa questão e é algo que paira sobre os contos de uma forma geral. Em “uma apresentação improvável” isso é deixado de forma explícita quando o próprio narrador coloca:
“Isso se tudo foi mesmo verdade”
“Tenho menor ideia. Apenas que aconteceu. No meu coração ou em outro lugar”.
O fato de algo ter acontecido só na mente torna a experiência menos real? Qual a diferença entre ficção e realidade? Vinícius não responde tais questionamentos, afinal, o papel dele é subverter, confundir, inquietar.
Um segundo exemplo excelente é em “patrícia e um farol”, um dos contos no qual uma mulher aparece e desaparece do nada. Há essa dúvida suspensa. Seria um toque fantástico? Fantasmagórico? Ou só o resultado de uma bebedeira às margens do Rio da Prata?
Acredito, porém, que a grande sacada do Vinícius ao trazer essa proposta de textos rejeitados, textos mais crus, para além da subversão em um ambiente cada vez mais padronizado e previsível, é levar o leitor a pensar o que seria a “baleia” nos contos aos olhos dos editores.
O que é “erro” e o que é estilo? Há uma diferença? O “erro” pode ser o estilo? São questões que podem ser levantadas o tempo todo.
Sobre o autor:
Vinícius Gonçalves Reis é escritor e poeta da cidade de Campos do Jordão. Ama a cidade, mas compreende as mazelas que toda a poesia das veredas jordanenses esconde em suas folhas de plátanos caídas. E elas o fizeram assim. Um escritor que escreve com intensidade, reflexão e uma compreensão de mundo profunda. Partiu do National Novel Writing Month para experiências marcantes com a escrita com contos selecionados por coletâneas brasileiras, para lançar seu primeiro livro de contos publicado em 2024. Um momento de grande alegria ver leitores descobrindo sua escrita e todo o sentimento transportado pelo seu lírico fantástico. Vinícius Gonçalves Reis é apenas um autor entre muitos, que continua escrevendo. Que continua escrevendo. Que continuará escrevendo, enquanto respirar.