“O mar quando quebra na praia é bonito, é bonito…” É assim que Dorival Caymmi começa uma de suas principais canções que celebram e retratam a força do mar. Porém, a canção não é sobre a pura beleza estética do mar, mas sobre seu terrível movimento e temperamento que leva embora o pescador Pedro, o rapaz preferido de Rosinha de Chica, prometida do rapaz. Acho que Perpasso, de Hevi Livre, é uma obra poética que se aproxima de Caymmi na forma de ver e retratar a força da vida do mar.
Perpasso, livro de estreia da poeta Hevi Livre, é uma coletânea de poesias lançada pela editora “Toma aí um poema”. Hevi, para quem não conhece, é uma pernambucana, poeta e lésbica formada em Ciências Sociais que buscou na arte uma forma de escapar de uma educação repressora e que, a partir das palavras, encontrou um jeito de dizer as coisas do mundo.
De fato, em seus poemas é nítida a procura de uma liberdade, se não a liberdade toda, pelo menos uma fatia, aquele um pouco de possível para não sufocarmos. E para isso, a imagem do mar estará o tempo todo como recurso poético: um mar bravio, revolto, que requer coragem para se encarar e, ao mesmo tempo, talvez a única possibilidade de enfrentar a vida. O desconhecido do mar.
Logo no primeiro poema, Hevi monta a aproximação entre esta imagem do mar como a figura da mulher:
Mar Mulher
Em cada vitória tua, mulher
Meu desaguar abundante te alcança
Dos afluentes até que todas sejamos mar
O importante deste poema, que poderia muito bem servir de epígrafe do livro, é que a liberdade da qual Hevi fala não é algo individualizado, nem tampouco uma liberdade de cunho liberal, que advém da subjetividade capitalística que gira em torno de um “eu”. Ao contrário, a liberdade é um gesto que sai dela, sim, pela linguagem poética, mas se lança em direção à coletividade das mulheres que, como “afluentes”, só terão suas tarefas realizadas “até que todas sejamos mar”.
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O mar, porém, também aparece sob formas distintas, algumas vezes como elemento a ser observado e apreendido como em “Como Olhar o Mar”:
Indescritível é olhar o mar,
Percebo-me pequena, sinto o infinito a me observar
Tamanha é a força da natureza
Prostro-me a admirar
Uma característica interessante da poética de Hevi é que, no tatear das palavras, a poeta parte de dois princípios para escrever sua poesia: a ideia de movimento e a ideia de impermanência. Assim, o mar como metáfora do real, se entrelaça entre outros elementos fugidios como a luz e o vento para dar nuances, complexidades, ambivalências que façam sua linguagem oscilar.
Nada é exatamente aquilo que parece ser, pois está sempre em relação a estes movimentos. Em Luz à Luz, por exemplo, a poeta nos mostra que “à percepção da luz, toda magia era sentida, / Inclusive a luz”, de modo que até a própria luz percebida estava sob efeito de si própria.
A impermanência, outro traço que Hevi tenta capturar, aparece ambivalentemente em um poema chamado Sossego:
Nada permanece inalterado
Nada permanece (…)
Estou perdida e desolada como o vai e vem das ondas (…)
Só ausências e impermanências
Não tenho mais forças para continuar a ir (…)
Entrego-me a um sono profundo
E chega o sonho enfim e com ele o meu sossego.
Note que o poema faz um jogo interessante entre a calmaria e a convulsão e, quando esperamos que tudo vai ser destruído pela força da natureza: vem o sossego. Um recurso interessante.
Porém, o mais potente deste gesto poético é que Hevi entralaça estas imagens, estes recursos, com suas experiências enquanto mulher, atravessada desde as poéticas amorosas das esperas até os percalços de sua vivência lésbica. E esta vivência é também com ironia, diante da urgência de uma vida cotidiana em um mundo capitalista, como em Relativo, um de meus poemas preferidos:
Eternidade
pode ser
um dia
naquele emprego
dos diabos
ou um beijo
de amor
nos braços
amados
A poética amorosa aparece também com certa ferocidade de um corpo que precisa se mostrar, que precisa vir para fora, como em Reviravolta:
Eu vou segurar a tua mão
Mesmo que meu ombro desloque
que os ligamentos distendam
e os músculos se rompam
filamento por filamento (…)
até que a dor se converta delirante
em desígnio
E assim, entre movimento e impermanência, Hevi vai “perpassando” suas experiências de vida. Lembrando que “perpassar” tem origem na ideia de um “passar entre”, de modo que Perpasso, livro de estreia de Hevi Livre faz este gesto: entre a violência da vida e a calmaria do mar, a poesia continua sendo um lugar habitável. Violento e revolto, sim, mas habitável, porque é capaz de um acolhimento que só as palavras podem trazer.