Leia uma crônica de “Minha pátria é a língua pretuguesa”, do escritor angolano Kalaf Epalanga

Kalaf Epalanga é músico, escritor e poeta angolano. Nasceu em Benguela, em Angola, em 1977, mudou-se para Lisboa aos 17 anos e, atualmente, vive entre a capital portuguesa e Berlim. Além de atuar como cronista para diversas revistas e jornais, foi um dos fundadores da Buraka Som Sistema, banda que espalhou o ritmo do kuduro pelo mundo e conquistou as principais pistas e festivais eletrônicos da Europa.

Leia também: “As Aventuras de Ngunga”, de Pepetela: a literatura é a infância da história

Em 2019, participou da Flip com o seu primeiro romance Também os brancos sabem dançar (2018), publicado pela editora Todavia. Ainda possui os títulos publicados pela editora Caminho, de Portugal: Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) (2014).


No novo livro Minha pátria é a língua pretuguesa (2023), título em homenagem à filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez, também publicado pela Todavia, o autor reúne mais de 40 crônicas publicadas em diversos veículos ao longo dos anos, refletindo sobre o trânsito entre os continentes, artes e sociedades e a riqueza e diversidade cultural.

Prefácio

Confira a crônica:

Cuidado com o livro
Sabem do que tenho mais saudades? Do livro aberto. Sim, isso mesmo, tenho saudade de ver um livro escancarado na mão de um leitor. Já não me lembro da última vez que vi um livro a ser devorado em público. Ler em público, ou até carregar um livro debaixo do braço, passou à história, é hoje praticamente figura de museu, alimento da nostalgia de poetas, romancistas e cronistas, para se empanturrarem até arrotarem os seus desvarios e estórias, que por vaidade ou capricho masoquista se dão ao trabalho de publicar em livros, que ficarão para sempre calados.

Nutrimos pelos livros o mesmo que sentimos por certos cães: medo. As casas comerciais, cada vez mais escassas, que carregam na fachada a palavra “Livraria” são encaradas com o mesmo respeitinho que nutrimos por aquelas habitações onde nos portões se lê “Cuidado com o cão”. As nossas bibliotecas estão para nós como os canis municipais: nunca pomos lá os pés. Ninguém quer ver, ninguém está para se comover com aquela quantidade de livros abandonados, engaiolados nas prateleiras numa agonia sem fim.

Quando kandengues, nossos pais, para incutir sentido de responsabilidade, nos davam de presente livros, e com eles as mesmas recomendações que forneciam quando nos ofereciam o nosso primeiro cachorrinho: “Cuida bem dele, leva-o a passear, é o teu melhor amigo”. Nós, na emoção inicial, brincávamos com eles envoltos naquela alegria infantil. Quando cresceram, ou melhor, quando nós crescemos, os abandonámos com a sua coleira/prateleira num canto qualquer, até morrerem de velhice.

O desaparecimento do livro do espaço público me leva de volta ao tempo em que em Luanda, anos 1980-90, se não me falha a memória, os cães que circulavam pela cidade desapareceram de forma repentina. Dizem as más-línguas que os responsáveis seriam um grupo de cooperantes filipinos cuja culinária, de tão vasta e exótica, incluía alguns quitutes e guisados confeccionados com carne de rafeiro. Um mito urbano que alimentou o nosso imaginário coletivo durante anos e, até hoje, repousa num anexo nos fundos da nossa memória.

Caros leitores, amigos da provocação e da conversa fiada, do largo da Maianga aos cafés da Restinga, de estímulo e afeto, românticos e nostálgicos, amantes da velha e quase extinta arte da leitura, permitam-me que vos dedique estas palavras, perdoem a vaidade deste vosso humilde cronista, tão pecador como qualquer outro, mas que vos tem na mais alta estima. A vocês, caros companheiros das manhãs aborrecidas de terça-feira, cuja utilidade, para além de ser mais um dia de labuta semanal, é apenas a de nos lembrar que o fim de semana ainda vem longe.

Se tencionam iniciar uma coleção de livros, estimados leitores, eis aqui algumas informações úteis que temos a obrigação de não respeitar:

•Logo a partir dos primeiros meses, todos os livros, sem exceção, devem ser vacinados anualmente contra a raiva;

Os livros não devem ter livre acesso à rua;

•Ao sair com o livro, mantenha-o sob controlo, utilizando coleira e guia;

•Nunca provoque um livro;

Não toque em livros estranhos, feridos ou que estejam se alimentando;

Não separe lutas entre livros, nem mexa com escritores e as suas criações;

E em caso de acidentes por mordedura: lavar o ferimento com água e sabão e procurar orientação médica; identificar o livro agressor e o seu proprietário; caso o livro seja conhecido, observar o objeto por dez dias.

Compre o livro AQUI!

Fonte
Fonte

Related posts

“O Voo das Libélulas e outros contos inflamáveis”, de Kênia Marangão: quando o fantástico encontra o mais brutal da realidade

Um conto de Tolstói e a outra face do cânone russo

“As sementes que o fogo germina”: contos de Sumaya Lima retratam estranhamento e impossibilidade de comunicação