“Eufonia, Euforias e Agonias”, de Giovani Miguez: a poesia é tudo aquilo que não desiste

Eu nunca sei ao certo se um poeta é um ser em estado de solidão ou um ser em estado de contemplação. Até porque as duas coisas podem fazer poesia: da solidão viria o exercício de preencher o vazio e, da contemplação, a tarefa de traduzir o mundo em palavras, traduzir efeitos em memórias escritas. Digo isso porque, ao terminar Eufonia, Euforias e Agonias, de Giovani Miguez, fiquei com a sensação de que o poeta é as duas coisas ao mesmo tempo: um ser que briga com e contra a solidão e, quando escapa dela, se torna um privilegiado ser em contemplação do mundo. A poesia, assim, é o produto final de uma batalha imensa e gentil com o universo. 

Eufonia, Euforias e Agonias, de Giovani Miguez, é o 11º livro do autor, publicado pela Editora Penalux em 2024, com edição de França & Gorj. É interessante, para poder falar desse livro tão potente e singelo, ir capturando pistas que o Giovani vai nos lançando no decorrer de sua obra. 

No prefácio do livro, Cristovam de Chevalier recupera Adélia Prado que, ao ser acusada de escrever versos sobre o cotidiano, responde que: “Mas do que trata um poeta, afinal, se não do seu cotidiano?” O poeta Bruno Lara, na orelha do livro, afirma que esta obra possui poemas de “assimilação intuitiva”, enquanto que o próprio autor nos dá de lambuja um possível caminho de leitura ao dizer que “a poesia deve ser esteticamente agradável, mas nem sempre”. 

Acredito que isto está no centro do que entraremos em contato em Eufonia, Euforias e Agonias: o autor está, sem dúvidas, em busca do belo – ou, ainda, é o belo que o motiva a sentar e escrever. O belo é a base daquilo que ele carrega em seu arcabouço poético e em seu repertório de leitura, porém Giovani não vai recusar a inspiração quando o que dela sair não for o belo; e nisto está um jogo preciosíssimo da obra. 

O autor explica os diversos sentidos de “eufonia”, que vai desde uma “bela voz”, do grego, passando por “som harmonioso”, no latim, até um pássaro que recebe este nome talvez porque agregue essas duas coisas. Pássaro este, afinal, que é escolhido para integrar a capa do livro. 

Poeta Giovani Miguez

Neste sentido, na tentativa de fazer da poesia um ato estritamente do belo, mas sem confiar que dele sairão todas as poesias, Giovani se entrega para um eterno exercício, um esforço de anotação do mundo em que observa que “o belo não é tão belo, o perfeito não é tão perfeito” – afinal, “a construção e reconhecimento das nossas eufonias só é possível em meio às euforias e agonias da vida”. E este será o procedimento que atravessará os 118 poemas deste livro, chamando a atenção, ainda, para o fato de que, no título, apenas a “eufonia” não está no plural, ou seja: enquanto a euforia e a agonia são plurais, a busca pelo harmonioso e belo é, via de regra, singular. 

Para começar o livro, Giovani lança um breve jogo de escrever poemas com os pronomes pessoais do caso reto, no caso, “eu…tu…ele..nós”. O interessante de abrir o livro assim é que temos a impressão de que o autor parte da esfera individual, do “eu”, e vai (se) atravessando sua escrita para a coletivização do “nós, vós e eles”. No “vós”, por exemplo, diz:

“lute, mas lute muito, até que tua
luta não caiba
mais neste mundo diminuto, 
sem imaginação, 
perdido na escuridão 
da lua.”

Como todo bom poeta que se preze, Giovani também vai à procura do que é o fazer da poesia, essa coisa frágil e cambiante. Em “Instante poético”, por exemplo, ele parte da premissa de que “a poesia é feita de instantes” para tentar traduzir o que seria isso:

“o instante poético,
repleto de dualidades,
faz do poeta
um ser de metafísicas,
onde versos 
criam universos, 
e faíscas.”

É interessante que podemos reconhecer em Giovani uma tonalidade funda de quem é um grande leitor de poesia e passou muito tempo de sua vida se dedicando a escutar e ler o que diziam grandes poetas. Ato louvável, como dizia Paulo Leminski: ser poeta aos 20 é fácil, quero ver manter-se poeta aos 60, 70 como fizeram Quintana ou Drummond. 

De fato, Giovani está escrevendo com seus mestres que parecem ser, de um lado, Manuel Bandeira, como sua escrita ao mesmo tempo lírica e seca, quase tímida e pueril, violentamente urbana, do beco. E, do outro lado, um outro Manoel, o de Barros, para quem a palavra está sempre ao contrário do uso comum, achando nos desfazimento das pedras poéticas – ou das gavetas, como recupera Giovani através de Bachelard na epígrafe do livro – a sua forma mais fina de escrita. 

É curioso porque ao lado desta busca do instante poético, o próprio autor vai se lançar sobre o vazio, embora afirme, diga-se de passagem, que:

“o vazio é uma utopia, 
não diferente de uma gaveta
vazia”

Outro ponto que me chamou atenção no decorrer de Eufonia, Euforias e Agonias foi tentar encontrar onde estariam estes três substantivos no decorrer do livro. Encontrei-os em diversos poemas, mas em especial em um que traz os três elementos reunidos, o que me fez pensar se teria saído dele a inspiração para a obra como um todo. Em “Eufonia”, lemos:

um som agradável
penetra a sala.
fraco, exala
uma sensação que, de dentro
de mim, do meu centro,
causa uma agonia.
mas, uma euforia
estável, 
um som agradável,
breve, produz eulália,
traz paz, seduz, 
como em uma poesia,
só que mais

Note que Giovani cerca os significantes do seu poema em busca de extrair dele os significados (o belo, será?), mas no final o poema vence e escapa desse atestado final do que seria a eufonia: “como em uma poesia…só que mais”. Em outro poema, chamado “Não em penso versos”, o poeta chega um pouco menos alegre para traçar o que é, em poesia, a euforia:

a poesia que tento
não é pensamento,
é apenas euforia,
um tenso, porém adverso,
instante, uma mania
irritante.

O mesmo estará traçado no poema “Euforia”, em que, parece, o que arrebata o procedimento poético é, para além de todo o resto, uma incapacidade de controlar também o que a poesia diz. Ou melhor, o que a palavra que sai da poesia diz:

falava 
pelos cotovelos,
não por  gostar das palavras,
mas para delas se livrar. 

No entanto, Giovani é menos verborrágico do que se acredita. A singeleza do gesto que, como disse, acompanha todo o livro, esse desejo do belo, espraia-se para todo o resto com um certo encanto menos nos momentos em que é preciso gritar, nos momentos, como ele próprio diz, de agonia:

um peixe fora d’água
entra em profunda agonia,
pois quer viver;
e como um poeta que, por falta de poesia,
não se entrega à mágoa,
luta para não morrer.

Assim, Giovani Miguez fecha uma espécie de trilogia de uma obra só, em que eufonia, euforias e agonias se reúnem para a composição poética de um escritor que parece estar mais do que maduro, mas no auge de sua escrita. Acredito que, estando em um país em que a poesia recebe tão pouco valor, é até inevitável que se confronte com as euforias e agonias de uma crítica escassa e leitores tão desatentos em seus celulares e aplicativos de streaming. 

Deixo aqui meu poema favorito de todo livro. Um exercício genial de síntese de palavras e uma verdadeira tradução do mundo em que vivemos. Por coincidência, chama-se “Vida bela”, nome similar a um dos meus filmes favoritos, de “A vida é bela”, de Roberto Benigni (que deu até nome ao meu segundo gato). No caso, Giovani se inspirou na poesia por conta de outro escrevinhador de desenhos, o André Dahmer”:

A vida continua 
a ser tão bela
apesar de toda essa
tela.

É uma alegria ler uma obra tão pujante e que nos diz que, no fim do dia, a poesia é tudo aquilo que não desiste. Um passeio pelas palavras de Giovani Miguez é um convite raro de um poeta que ainda acredita na força da poesia. Eufonia, Euforias e Agonias é um livro tão contemporâneo que soa clássico.

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