Assisti “A Música Natureza de Léa Freire” na fria noite da última terça-feira (16) em São Paulo. A pré-estreia foi felizmente sediada no Espaço Augusta de Cinema, já que a rua é uma bela integrante da trajetória musical de Léa Freire, que inicia sua carreira subindo e descendo madrugadas ali, ao lado de Filó Machado. Só posso imaginar as memórias que se avivaram em Léa, que estava presente na exibição, sentada na fileira abaixo da minha.
O antigo cinema de rua, outrora patrocinado por um importante banco, hoje se sustenta aos destroços, largado às mãos de uma empresa terceirizada. Mas apesar do frio, a sala estava lotada, claramente celebrando a grandiosidade de Léa.
No começo do filme temos em destaque as montagens em arquivo de Joaquim Castro, que utiliza frames da infância de Léa mescladas a memórias de ruas importantes para a história que está sendo contada. Os arquivos e memórias são o ponto forte do longa, e nos permitem ver o lado essencial do trabalho da compositora, que atua como uma ourives.
Imagens como a afinação da flauta de Léa ressaltam essa característica da obra em tela, mas só aparecem quase 10 minutos depois da fala de Joana Queiroz que destaca as obras de Freire como sendo “cheia de complexidades, um trabalho mesmo de ourives”. Em outras passagens a montagem se desloca: o fato de Keith Underwood aparecer muito antes de ser citado pela protagonista afasta pontos importantes para o enredo, e se contradiz quando resolve incluir pautas de gênero que, da maneira que foram apresentadas, deixam lacunas e buracos pelo caminho. Assim, o filme não parece dar conta dessa trajetória sensível, esbarrando no desafio de contar a história da compositora.
A narrativa, não fossem por questões que não falam diretamente sobre a natureza da música, teriam sido um alívio e alegria para o cinema nacional. Ao contrário da busca poética documental, o filme de Lucas Weglinski foge da construção harmônica, melódica, sensível e contra temporal que nos conta a própria natureza de Léa Freire.
De takes lavados à imagens em desfoque, o longa parece correr com certa displicência, afastando o espectador da trama que se monta. Durante as músicas, exibidas na íntegra, fica a sensação que estamos diante de clipes compostos para o youtube, como durante a música “Tempestade”, onde sobreposições simplórias nos mostram justamente uma tempestade. Nestas horas os bocejos são intensos e não são poucos.
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O filme consegue captar diversos insights sobre a vida e obra da compositora, entretanto deixa pontas soltas que poderiam colaborar para que a obra de Freire fosse realmente a protagonista do enredo. Vendo por ângulos puramente cinematográficos, o filme com duração de uma hora e quarenta se arrasta e não consegue fazer jus à grandiosidade da personagem à quem somos apresentados, pois quando o cinema se transforma em ilustração, a própria natureza dele se esvai. Todo o sentir que recebemos ao escutar as composições de Freire se amortalham em cenas-clipe, fazendo com que a plateia se atenha somente a isso: escutar composições e, pela beleza sonora, aplaudir.
Muito mais do que uma importante personagem da cultura brasileira, Léa Freire se mostra em seus relatos como uma grande referência da rica e autêntica personalidade marginal – aquela que engrandece a resistência cultural e política, quando diz, por exemplo, “Eu ficava tirando música nas aulas de química”. Relatos como este felizmente planificam outros relatos mais óbvios que aparecem narrados ao longo do filme.
O longa deixa um gosto meio amargo de desperdício. Mostra toda uma nova geração musical ao mesmo tempo em que deixa escapar a possibilidade exponencial de engrandecer a natureza da música de Leá Freire, que se revela gigante quando nos conta como enxerga a própria música.
Apesar do desapontamento imagético e sonoro que parece não ser ainda a obra que fará jus à grandiosidade de Léa, ficam grandes lições artísticas e musicais. O filme contempla passagens importantes da história pessoal da artista, nos devolvendo o centro de compreensão da constante situação cultural: por vezes cairemos no limbo e sucumbiremos ao tempo.
É de grande importância trazer Leá Freire às telas, já que muito mais do que suas composições ela contém em si mesma a capacidade de tradução sensória de seu entorno. É capaz de nos transportar, em suas construções sem lugar, para um lugar visível, tátil, composto por frames, aromas e sabores, afinal…
“O trilho do trem não é sempre igual em extensão. Às vezes é quatro, às vezes é em sete (…) aí a paisagem começa a se mover em câmera lenta, no horizonte… Então são essas lentas melodias da paisagem acontecendo, enquanto ainda tem o caminho que está perto de você, mas você só consegue focar na paisagem, que tem postes que passam completamente fora do ritmo.”