A pesquisadora Isabela Nunes conta um pouco sobre a experiência de ler David Foster Wallace
Pediram para que eu escrevesse algo curto respondendo a essa pergunta. Leitores experientes sabem que recomendações de leitura podem ser uma prática hostil e violenta. Em tempos editorialmente saturados, defender por que se deve ler autor x ou y chega mesmo a ser cruel, em alguns casos indefensável, por exemplo se a obra mais conhecida do autor em questão tem mais de mil páginas e ainda trezentas notas de rodapé, o que pode ser sintoma de uma resistência talvez patológica à brevidade e de uma recusa literariamente obstinada a ser curto e direto.
Eu pergunto: quem em sã consciência pode recomendar um romance de mil páginas a alguém, um romance que já foi descrito como uma releitura codificada de Os Irmãos Karamazov mas também de Hamlet mas também de Ulysses, e que tem mais de duzentos personagens espalhados por linhas narrativas que não se encontram, e que na verdade não parece ter linha narrativa nenhuma, porque não caminha para lugar nenhum – quem pode recomendar um romance assim a alguém e ficar em paz consigo mesmo? Um autor desse tipo não se recomenda. Um autor desse tipo é um convite, deve ser encontrado ao acaso, se possível, como se andando pela rua você olhasse para o chão e de repente brilhasse uma moeda. Atende ao chamado quem puder.
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Recomendar um autor desse tipo pode ser complicado também por outros motivos. Não importa a extensão da obra; ele ainda assim parece ser maior. Seu canto de sereia é um dos que desafiam os que mataram o autor: ele não tem leitores e críticos, tem fãs. Diz a lenda que poucos terminam o romance de mil páginas, mas muitos idolatram quem o escreveu. (Os que terminam evidentemente se vangloriam, pode ser que sem muita humildade). Trinta anos depois, a opinião pública ainda não se decidiu entre o amor cego e o ódio cego. Ambos parecem às vezes um tipo estranho de idolatria. É o último grande romance americano; é uma farsa pretensiosa, pubescente e pavorosa.
No imaginário popular, a já nebulosa distinção entre autor, obra e recepção pode ser ainda mais volátil com um autor desse tipo. Com um autor desse tipo, nem todos tomam o devido cuidado.
Isso pode gerar mal-entendidos.
Dizem que é um gênio, mas ninguém sabe por quê. Dizem que é polêmico, mas ninguém sabe por quê. E dizer: “atende ao chamado quem puder” também pode ser capcioso por si só, outra hagiografia cifrada, como se eu glorificasse a armadilha que finjo não sugerir ao lançá-la a você como desafio, também sem saber por quê.
Um autor desse tipo já foi desrecomendado muitas vezes. Está fora de moda, você pode não conhecê-lo mas já é literatura contemporânea ultrapassada, cometeu crimes imperdoáveis, foi enaltecido e rejeitado tantas vezes dentro e fora da arena literária que em certas horas da noite é possível dizer seu nome em voz alta e sentir o quarto fazendo algumas caretas.
Se por azar alguém recomendá-lo a você, se por azar você ficar curiosa, tão curiosa que acabe lendo um romance de mil páginas e passando alguns dos jovens anos da sua vida obcecada por ele, talvez acabem te perguntando por quê. É provável que você precise se justificar, também porque você é uma mulher, e um autor desse tipo só pode ser um homem. Há outros livros e outros autores, afinal de contas.
E quando pedirem para que você conte aos outros por que ler um autor desse tipo, você não vai saber muito bem o que dizer, talvez também tenha alguma resistência patológica a ser curta e direta, porque sabe apenas que você o leu e que, muitas contradições nebulosas depois, continua gostando delas e das perguntas sem resposta, e que talvez esse seja um motivo muito simples, mas que, no fim das contas, é o único que você pode oferecer.
Isabela Nunes é graduada em Letras e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada, na Universidade de São Paulo. Estuda a noção de representação em ‘Graça Infinita’, de David Foster Wallace.