“A face mais doce do azar”: um olhar sublime para as tragédias de nossas vidas

Resenha de A face mais doce do azar, de Vera Saad, publicado pela Editora Claraboia

Qual é o peso da política em nossas pequenas e grandes tragédias? Analisemos a questão a partir da fábula A Cigarra e a Formiga. A cigarra passou o verão cantando, enquanto a formiga juntava seus grãos. Quando chegou o inverno, a cigarra veio à casa da formiga para pedir que lhe desse o que comer. A formiga? Lhe disse: “Muito bem, pois agora dance!”

Brasil, anos 90. Um presidente jovem e promissor, autoproclamado caçador de marajás, assume a presidência do país em meio a um processo de redemocratização pós Ditadura Militar. Diante disso, nos deparamos com diversas histórias de famílias que tiveram a sua vida privada atravessada pelas políticas econômicas do governo do então presidente Fernando Collor de Mello. Vera Saad em A face mais doce do azar nos convida a conhecer um fato da história do Brasil a partir do olhar de Dubianca, que teve o começo de sua adolescência cravado como uma tragédia advinda de um caos social. 

O início da adolescência é carregado de dúvidas, medos e angústias. Quando se é mulher, então? O peso social inflaciona. A inocência, a curiosidade, um corpo que se muda em meio a uma sociedade que também se transforma é o que faz de Dubianca uma protagonista tão sensível. A vida privada de sua família, vítima da política econômica de Collor, a expos a uma série de negligências que refletiram na sua maneira de ver o mundo.

Formigas que se preocuparam tanto em juntar seus grãos que acabaram esquecendo da fragilidade de seu formigueiro. Dubi, como foi apelidada, possui um filtro do olhar compadecido, que nos embala num entendimento da narrativa de forma leve, expondo a ingenuidade de uma menina que na verdade estava omitindo o seu medo ao estar perdida em um mundo que parecia desmoronar.

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A autora proporciona uma leitura envolvente, enlaçando fatos e narrativas que indicam o caminho a se percorrer até o íntimo de sua protagonista, responsável por confiscar a nossa atenção diante daquilo que ninguém quer ver, um rasgo na nossa história que perpetuou diversas crueldades ocultas. Dubianca, que poderia se compadecer com a formiga pelo seu senso de justiça, escolheu ser cigarra ao mudar a narrativa e cantar sua dor em busca de liberdade, clamando pela atenção que nunca teve e escancarando o que resta para nós, mulheres, diante de uma desordem social: a violência. 

Vera Saad escreve para todas as Dubiancas que tiveram as suas pequenas e grandes tragédias influenciadas pela política. Uma escrita com sensibilidade feminina, um olhar de quem se vê na protagonista, que grita pedindo vida como uma cigarra que escolheu mudar a sua história. Uma complexidade que perpassa a todas nós, meninas e mulheres. Afinal, tudo é político quando se é mulher. E essa é mais uma das faces do azar.

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