Nos 60 anos do golpe militar, “Chumbo”, de Matthias Lehmann, chega ao Brasil

Um pai capaz de repelir as almas mais repulsivas, uma mãe tolhida por esse mesmo pai, e seus filhos, Severino, Ramires, Adélia, Úrsula e Berenice, que tentarão, de uma forma ou de outra, encontrar uma saída, com mais ou menos sucesso. Este é o retrato terno e cruel dessa família pauperizada de Belo Horizonte que Matthias Lehmann, autor franco-brasileiro, nos oferece, com o pano de fundo da grande história do Brasil, um país continental, cheio de avanços e eternos retrocessos.

Através da literatura, da imprensa, da arquitetura, das paisagens, da música e até mesmo do futebol, Matthias Lehmann nos oferece uma experiência sensível da cidade de Belo Horizonte no século XX, o palco de todas as aventuras de Severino, testemunhando desde sua juventude até sua consagração como escritor. Pontuado por ilustrações satíricas e recortes de jornal, o relato não deixa de abordar os eventos políticos que perturbam o curso da vida dos personagens. O golpe de Estado de 1964 e os 21 anos de ditadura militar causaram uma polarização na sociedade brasileira, que se reflete, como um sintoma, na família Wallace.

Ditadura sem rodeios

O próprio título já denota que boa parte de Chumbo se concentra nos anos repressivos da ditadura que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Lehmann é detalhista ao abordar o contexto do golpe, seus desdobramentos e a progressão do regime ao longo dos anos, sem nunca perder de vista seus personagens. Enquanto o jornalista Severino integra a resistência de esquerda, seu irmão Ramires, um conservador, participa de ações civis em apoio aos militares. Essa é só uma fração da profundidade que o quadrinista traz ao tema.

Ao fechar as páginas de Chumbo, fica a rara sensação de se ter descoberto uma família, uma cidade, um país e, se já não fosse evidente, um grande desenhista. A graphic novel, que já é muito prestigiada no exterior, fez parte da última seleção oficial do festival de quadrinhos francês de Angoulême. Por aqui, chega com 368 páginas em papel Offset de alta gramatura e tradução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibre.

Leia também: Você sabia que o filme “O menino e a garça”, é inspirado em um livro clássico japonês?

A decadência de uma família burguesa ao longo de um século é retratada de maneira crua e, por vezes, devastadora ao longo dos quadrinhos. Lehmann não mede esforços ou grafismos para exibir o mais decadente que pode acontecer a seres humanos em situações extremas e também a forma mais bolorenta que a fraqueza de caráter e espírito podem engendrar em alguém. As diferenças de classe destacadas são implacáveis, o racismo está por toda parte e a pobreza é corrosiva. A luta política, entretanto, é onipresente.

Clara Rellstab, em resenha publicada na revista Quatro Cinco Um

Ditadura sob a perspectiva de uma família é tema da HQ Chumbo:
Matthias Lehmann conversa com Correio Braziliense sobre a graphic novel. Leia aqui.

Matthias Lehmann é um quadrinista, pintor e ilustrador franco-brasileiro. Filho de mãe brasileira e pai francês, ele se inspirou na personalidade dos seus tios maternos para criar os protagonistas de Chumbo, embora seja uma história principalmente ficcional. Um deles, a inspiração para o personagem Severino, foi Roberto Drummond, autor de Hilda Furacão e ícone da literatura pop brasileira. 

Se você ainda precisa de mais motivos para ler essa história, então entenda pelas palavras do autor como se deu o processo criativo de Chumbo:

Uma ficção documentada

“Minha narrativa começa no núcleo familiar e se expande, primeiro para a cidade de Belo Horizonte, depois o estado de Minas Gerais e, finalmente, a história do Brasil. Além da família, era necessário contar mais de sessenta anos de história. Pesquisei muito, especialmente sobre o período da ditadura militar. Havia tantas fontes que precisei fazer pesquisas direcionadas. Para cada tópico, identifiquei o livro mais preciso. Após três anos e meio de trabalho, finalmente sinto que conheço verdadeiramente esse país que sempre reivindiquei como meu.

Um retrato familiar…

A família é o microcosmo perfeito para retratar uma sociedade. Ela cria espaços que permitem acompanhar o cotidiano dos personagens. Ao mostrá-los comendo, saindo, bebendo, encontrando-se com amigos ou em sua intimidade, podemos obter um conhecimento agudo de suas vidas. Esses momentos fazem parte de nossas existências e, portanto, por uma questão de realismo, parece natural colocá-los em cena. O que me interessa é o determinismo social, mostrar como os personagens são levados, apesar de si mesmos, a seguir certos caminhos devido às linhas traçadas pela sociedade, pela tradição e pelas relações de classe.

…e histórico

Em Chumbo, meus personagens evoluem em um período muito denso de acontecimentos. Desde o fim do império português, houve tantos golpes de Estado e reviravoltas, em um tempo relativamente curto, que isso criou um sentimento de fatalismo, como um eterno recomeço. Apesar dessa possível desilusão, eu queria apresentar personagens como Severino e Iara, que se engajam mesmo quando o direito de se manifestar é contestado durante a ditadura militar e o protesto chega até a luta armada. O que é certo é que as conquistas nunca são definitivas.

>> Continue lendo a entrevista de Matthias Lehmann.

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