“Amor Recreativo”, de Luiza Leite Ferreira: amor líquido e amor romântico em embate

“A coisa mais fina do mundo é o sentimento”, disse Adélia Prado certa vez, e nos mais de 50 poemas de Amor Recreativo, a jornalista, tradutora e escritora Luiza Leite Ferreira trabalha exatamente a fineza de sentir, de viver, de amar.

Como em um cortejo de Carnaval, somos apresentados à alegria quase pueril de vestir a fantasia, ganhar a rua, encontrar o bloco e finalmente ouvir os músicos. Então vem o êxtase, o sol a pino, os corpos que se encostam, os suores trocados e o ápice da celebração cujo fim é um só: a ressaca da Quarta-Feira de Cinzas, que muitas vezes vira dia útil após o meio-dia, sendo preciso força para se reerguer, em outras palavras, reagir e botar um cropped.

Com belíssimas ilustrações de obras de Félix Edouard Vallotton, o livro é dividido em quatro partes: Recreio, Fantasia de casal, Quarta-Feira de Cinzas e Na pista

Em Recreio, o abre-alas, temos poemas que remetem à infância e à adolescência, com as típicas paixões platônicas e amores não correspondidos. Despertou-me lembranças daquela inocência das mensagens de amor que vinham dentro das embalagens de bombom, ou o clássico das festas juninas da escola, o correio do amor e suas indiretas bem diretas. 

Nessa primeira parte também temos o poema que dá nome a obra, Amor Recreativo, e que carrega muito do tom do livro no geral, inclusive se pensarmos no próprio nome “Recreio”, “Recreativo”: divertido, que dá prazer.

Amor recreativo

De quem você gosta? 

Era a pergunta que se repetia 

quase todo dia no recreio da escola 

R. gostava de M. que gostava de E. que gostava de J. 

Só de dizer que gostava já era motivo pra virar chacota. 

Mesmo assim, respondi certa vez: gosto de sete 

A comoção não ultrapassou o recreio 

e eu sabia que gostar não era igual a amar 

mas naquele dia, por pelo menos meia hora, 

amei todos os garotos da minha sala 

sem distinção.

Falando em diversão, até na forma Luiza parece se divertir, visto os recursos concretistas que usa em Perder o chão, poema no qual ela aproveita o espaço em branco para despencar-se no vazio. Além de brincar com a língua ao misturar português, inglês, francês e até alemão. 

Já em Fantasia de casal, segunda parte do livro e que traz a maioria dos poemas, vemos o amor tomar uma forma mais concreta, mesmo que ainda efêmero e por vezes com aquela cara de amor de Carnaval: intenso, glamouroso, com muito glitter e paetê, mas que não resiste a uma chuva de verão. 

Há também, retomando a fala de Adélia Prado, o sentimento de que é através das experiências e das ações, mais até do que das palavras, que aprendemos sobre o amor. É no cotidiano. É na rotina. É ao observar tartarugas, elaborar fantasias de carnaval, dividir a cozinha, lavar roupa e até declarar imposto de renda. 

O poema Laundry & Taxes, inclusive, despertou uma conexão com a cena do beco de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, dos diretores Daniel Scheinert e Daniel Kwan e vencedor do Oscar de melhor filme de 2023. Nessa cena, Evelyn, personagem interpretada por Michelle Yeoh, é uma estrela de cinema e conversa com Waymond, interpretado por Ke Huy Quan, que confessa que em outra vida lavaria roupa e pagaria impostos com ela. Sendo essa cena uma referência direta ao poético Amor à Flor da Pele, do diretor Wong Kar-Wai, filme que ficou conhecido não apenas pela sua beleza e dramaticidade, mas por trazer o amor líquido que nos é tão contemporâneo. 

Todas essas conexões desembocam na poesia da Luiza e em como ela traz o embate entre o amor romântico e a liquidez do amor imprevisível e tudo que ele poderia ter sido, principalmente na terceira parte do livro, Quarta-feira de Cinzas

Aqui, o Carnaval teve seu fim, a fantasia acabou e resta a ressaca do amor nem tão recíproco e que afrouxa como um elástico que perde a tensão, que perde o tesão.  

Cabide

O lastex do meu vestido 

aquele azul, com flores 

começa a afrouxar 

sinto suas mãos 

me deixando, devagar

Porém, como dito no segundo parágrafo dessa resenha, após a Quarta-Feira de Cinzas vem o dia útil e é preciso reagir, que é exatamente o que vemos nos poemas da quarta e última parte, Na pista

O eu-lírico levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, como no samba composto por Paulo Vanzolini e eternizado em vozes como de Beth Carvalho e Jorge Aragão:

“Reconhece a queda
E não desanima
Levanta, sacode a poeira
Dá a volta por cima”

Esse eu-lírico, agora de batom vermelho e foto de perfil atualizada, mostra-se disponível para amar novamente, e não apenas o outro, mas principalmente a si. 

Reflexo

Me olho no espelho 

e me amo em dobro 

sou duas 

uma sonha com finais felizes 

a outra passa batom vermelho 

Essa noite as duas saíram para dançar 

corro o risco de me apaixonar

Entre sonhos, decepções, lágrimas e risadas, os poemas de Amor Recreativo revelam as diferentes faces do amor e das experiências românticas, da mesma forma que traçam uma jornada de autoconhecimento que por fim leva à consciência do que se quer, e mais importante, do que não se quer. 

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Sobre a autora: Luiza Leite Ferreira é autora dos livros de poesia É na cacofonia que eu me escuto (Caravana, 2022) e Amor Recreativo (Patuá, 2023) e tem textos publicados em diversas revistas literárias, como Lira, Ruído Manifesto e Mormaço. Natural do Maranhão e radicada em Niterói, escreve desde criança e participou das antologias VII Concurso Municipal de Conto de Niterói (2008), Debaixo do mesmo céu (2020) e Corações inquietos (2021). Jornalista e mestranda em Estudos de Literatura na UFF, atua como tradutora e revisora, escreve em leialuiza.wordpress.com e luizaluiza.substack.com e integra o portal Fazia Poesia e o Coletivo Escreviventes. IG: @lulumilk e @leialuizablog

Foto: Guilherme Faria

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