Poeta explora a estranheza e simbologia do duplo a partir da hibridez da forma em obra poética O Duplo Refletido, publicada pela Folhas de Relva Edições
Livro de estreia da poeta, crítica literária e editora carioca Lorraine Ramos Assis (@catarsesoculares), “O duplo refletido” (Folhas de Relva Edições, 135 pág.) usa a hibridez entre a prosa e a poesia para tratar de temas relacionados com memória, violência machista e luto familiar, sob a perspectiva da saúde mental. A obra já está em pré-venda no site da editora.
Publicada pela Folhas de Relva Edições, a obra conta com orelha de Mar Becker, blurb de Paulliny Tort, prefácio de Luizza Milczanowski e posfácio de Priscila Branco. Com paratextos assinados por quatro escritoras diferentes, esse livro, já tão polifônico pela evocação do duplo desde o título, torna-se um multiplicador de vozes de mulheres também nesse aspecto.
A figura do duplo, um clássico na história da literatura, se constrói a partir de uma abordagem misteriosa, quase fantástica, e cheia de camadas em “O duplo refletido”. “O duplo trabalha com a mimese, aquilo que, em paradoxo, magnetiza e repele, as pulsões prementes de desejo e de morte que incorporam um ser materialmente estilhaçado. Esse ser que se separa é o lado oculto, a sombra. Lado que não queremos, mas que nos fita no espelho, sem escapatória”, expõe Luizza Milczanowski em seu texto sobre a obra.
Essas características ganham ainda mais profundidade pela abordagem escolhida pela autora, que, como afirma Priscila Branco no posfácio, explora questões de autoria e narração em um livro de poemas que se propõe a contar uma história e transforma o duplo em um ser ainda mais multifacetado: “Primeiramente, um duplo apenas já costuma ser visto como um avesso simétrico de nós mesmos. Mas nesse título encontramos mais que isso, pois há um terceiro elemento, que é o reflexo ainda do duplo.”
Lyna e Lineia, personagens principais do livro, são vítimas de um crime, e “O duplo refletido” representa a reconstituição desse momento de injustiça e violência e a elaboração do trauma relacionado ao evento. E, mais uma vez, resta a pergunta: quem são elas? Elas são a mesma pessoa? Elas são um mesmo corpo feminino violado?
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O impacto do machismo na construção desse eu-lírico feminino e peculiar se faz presente a partir da dureza do que está sendo narrado — apesar da faceta do sonho presente nesse livro, destaca Luizza, há uma lucidez de concreto, uma cidade que molda também esses corpos. Lyna e Lineia são donas, talvez pela primeira vez, de narrativas próprias, lugar onde encontram voz, buscam compreender ou talvez apenas reformular a si mesmas, confrontar perspectivas, explicitar e obsedar o outro, por vezes dissolvido na figura de homens cujos nomes (ocultos, duplicados) compõem um universo esfacelado.
A palavra como reflexo: o espelho da poeta
Com 26 anos, Lorraine Ramos Assis já foi publicada em diversas revistas, jornais nacionais e estrangeiros, tais como Jornal Cândido, Revista Cult, Jornal RelevO, Granuja (México) e Incomunidade (Portugal), entre outros. Também atua como colaboradora no portal São Paulo Review e na Revista Caliban, além de integrar o corpo de poetas do portal Fazia Poesia.
Suas principais referências literárias são Denis Johnson, Raduan Nassar, Dia Nobre, Marcelo Labes, Cristina Judar e Ana Cristina Cesar. Durante a escrita desse livro, alguns títulos, como “O diário secreto de Laura Palmer” de Jennifer Lynch, “Dança para cavalos” da Ana Estaregui, “O martelo” de Adelaide Ivánova e “O funeral da baleia” de Lilian Sais também se tornaram influências essenciais.
Segundo a autora, “O duplo refletido” nasceu como um projeto que buscava uma escrita híbrida e que, apesar de ter sofrido muitas alterações desde seu projeto inicial que imitava o formato diário, sempre teve intenção de abordar experiências de vida relacionadas com o feminino e a violência de gênero, luto e orfandade e as consequências dessas vivências na saúde mental.
Esses temas difíceis interessam a autora por motivos pessoais, relacionados com sua história de vida que envolve a perda de ambos os pais e um relacionamento abusivo, apesar do livro não ser uma autoficção. “Tive a intenção de colocar essas discussões em evidência de modo cru, mas ainda com cuidado dado a natureza dos temas. Acabamos de sair da pior fase de uma pandemia com dezenas de milhares de mortos, logo, como o luto não pode ser discutido?”
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Confira um trecho de “O duplo refletido”:
demonstrar fragilidades quase em sigilo
dolorosa conforme a ponta de um quartzo
odeio falar de cristais
e o passado cindido nas camas
e biombos e
átomos
os padrões das circunstâncias invertidas
padrões da inversão do conforto
recebido desde o batizado
o conforto de se ter algo
e perder
mas agora vejo que o abandono
é para os famélicos da terra
bebo a própria saliva para não ser vítima
do incenso
afogado
nunca mais