“Ancestralidade, sonhos e linhagem materna”: entrevista com a escritora Camilla Loreta

Por meio de uma linguagem que passeia entre os diários de viagem, o onírico e as conexões entre passado e presente, o romance “Sândalo vermelho e os gatunos olhos dela” (Editora Urutau, 216 p.), de Camilla Loreta, explora questões de ancestralidade e de linhagem materna. A autora, que já havia feito incursões na poesia, estreia como romancista com uma prosa ágil, ambientada na Polônia contemporânea.

Na obra, acompanhamos a travessia e o inconsciente da protagonista Léia Stachewski, filha de pai polonês e mãe brasileira, que nasceu e passou a infância no Rio de Janeiro. Após misteriosos acontecimentos vividos pela família, ela retorna à Polônia. No decorrer da narrativa, a personagem decide iniciar uma viagem de carro sozinha pelo Leste Europeu, rumo à Finlândia. Perdida em um território gelado, ela relembra momentos de sua formação no Brasil, origens familiares e motivações.

O romance começou a ser desenhado em 2016, quando Loreta foi convidada para uma residência artística chamada  The Artist meeting, na Polônia, em uma pequena cidade chamada Marianowo, e ganhou vida após uma oficina literária com a escritora Carola Saavedra, que assina o orelha da obra. O enredo também se baseia na vida de duas mulheres: uma cigana polonesa, Papusza, que foi a mulher de seu povo a escrever, mesmo que isso fosse de encontro aos costumes tradicionais do povo romani; e Sydonia Von Bork, a última princesa da Pomerânia, acusada de bruxaria e queimada na Inquisição após 15 anos de julgamento.

Camilla Loreta é formada em Audiovisual e História da Arte, em São Paulo.  Pesquisa a escrita o corpo e a imagem através das artes gráficas e audiovisuais. Dirigiu dois curtas-metragens, “Clara” e “O Silêncio das Pedras”. Participou de diversas residências artísticas. Atualmente cursa a pós-graduação do Instituto Vera Cruz para escritores de ficção. 

Confira abaixo a entrevista completa com Camilla Loreta:

O que motivou na escrita do livro?

Em 2016, participei de uma residência artística na Polônia. Quando recebi o convite foi uma surpresa, pois parte da minha família paterna vem dessa localidade. Ao chegar lá, me deparei com temas que me tocaram no profundo, pela história pregressa familiar.

Quando então, descobri, pelos anfitriões da residência, que ali onde estávamos – um monastério antigo – tinha sido a última morada de Sydonia Von Bork, a última princesa da Pomerânia, que tinha sido queimada na inquisição após 15 anos de julgamento. Eu me interessei de modo instantâneo pelo assunto e comecei a pesquisar, e isso me levou a escrever. Comecei a escrever a história do livro por aí, achando que seria uma ficção científica a respeito do que aconteceria com Sydonia depois de sua morte.

Quando retornei ao Brasil isso se aquietou e por um tempo o livro perdeu a direção, até que alguns anos depois fiz uma oficina com Carola Saavedra, e tudo entrou nos trilhos. Assim descobri para onde queria ir com a história e, principalmente, descobri quem era a personagem principal, Léia Stachevski.

Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam? Por que escolher esses temas?

Ancestralidade, sonhos e linhagem materna. Não escolhi exatamente, eles apareceram. Eu queria honrar Sydonia, já que na Polônia até hoje ela é tratada como uma assombração. Durante a escrita, questões históricas e sociais desta região ficam aparentes, como o nazismo, a pobreza e as perdas de território. Tudo isso também está intrinsecamente ligado a minha história familiar.

Outro ponto que eu queria mesmo trabalhar, e esse talvez tenha sido mais deliberado, era a ideia de que o Brasil não tem passado matriarcal, pois ele teria sido eliminado durante a colonização. Por isso a escolha deliberada pelo desaparecimento da mãe da protagonista.

Quais são os seus livros fundamentais? Quais obras influenciaram diretamente a obra?

Tudo que li do Murakami. Acho que ele constrói bem personagens, e isso sempre me motivou. Assim como os livros do Paul Auster. Gosto muito do “Noite de Oráculo”. Gosto muito de literatura asiática, “Kitchen”, da Banana Yoshimoto, é meu livro favorito. Tudo que envolve comida me interessa. A poesia de Emily Dickinson é bem seminal para mim, assim como a Sophia de Mello Breyner Andersen.

Aqui no Brasil, duas leituras me deixaram rastros internos que ainda analiso os caminhos até hoje, que foram “Um Defeito de Cor”, da Ana Maria Gonçalves, e “Outros Cantos”, da Maria Valéria Rezende.

Os livros “Kafka à beira mar”, de Haruki Murakami, e “O amante”, de Marguerite Duras, influenciaram diretamente a escrita do meu livro.

Outras referências para mim são Virginia Woolf, Matsuo Bashô, Ana Maria Gonçalves, Gita Mehta, Carola Saavedra, Ian McEwan, Paul Auster, Gabriel García Márquez, Simone Veil, Sayaka Murata, Sei Shonagon, Maria Gabriela Llansol, Rainer Maria Rilke e Hermann Hesse.

Leia também: “Agora e na hora de nossa morte”: Entrevista com o poeta João G. Junior

Como você definiria seu estilo de escrita?

Poético, fragmentado, inspirado no inconsciente. Em “Sândalo”, a voz narrativa se alterna entre primeira e terceira pessoa. Em alguns momentos, a perspectiva é de Léia, em outros, acompanhamos a visão de outros narradores, o que contribui para o estilo fragmentário e aos constantes incômodos da protagonista, que, apesar de ser avessa a mudanças, desloca-se por diferentes cenários e países durante o enredo.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Terminei minha pós-graduação ano passado, então estou finalizando meu TCC, que é um romance. Se chama “O peso e a cor de cada coisa”, sobre Sofia Bruner. O romance é dividido em duas partes, e explora o mundo consciente na parte um e o mundo inconsciente na parte dois. A parte um tem uma forma próxima a um diário da personagem, uma roteirista que se encontra em um momento de conflitos internos com a maternidade e relacionamentos amorosos. A parte dois é o duplo de Sofia, no mundo dos sonhos, e tem uma forte inspiração na cosmogonia guarani e outros mitos originários. Isso apareceu na minha pesquisa íntima da minha ancestralidade, que é parte indígena. Minha tataravó Filomena, ou Passarinha, tem uma história misteriosa na linhagem familiar e comecei a buscar por ela, e nesse processo a história apareceu.

Quer conhecer o trabalho de Camilla Loreta? Siga a autora no instagram!

Related posts

O Cochilo de Deus:  Raïssa Lettiére retrata  família em momentos históricos diferentes após “cochilo” de Deus

“O Cordeiro e os pecados dividindo o pão”: Milena Martins Moura resgata a tradição judaico-cristã pelo viés do prazer da mulher

“O que sei de você”, de Éric Chacour, retrata romance entre dois homens no Egito da década de 1980