Mia Couto é, hoje, o autor moçambicano mais conhecido. Dos que escrevem em língua portuguesa é, talvez, o que mais tem conquistado prêmios e reconhecimento. Mia Couto é importante porque além de falar para o mundo, também tem falado para os seus: desde Terra Sonâmbula o autor vem contando histórias de uma Moçambique após sua independência. A maioria delas a respeito de um país absolutamente devastado pelas guerras civis, das tribos e dos autoritários e violentos governos que, em meio a corrupção, se usam da fé e da crença da população para se tornarem espécies de novos deuses encarnados. No entanto, não se pode dizer que os livros de Mia Couto sejam trágicos ou tristes, pelo contrário, quem os lê percebe logo de cara a imensa poesia, mágica e esperança na narrativa de suas fábulas. Leia mais aqui!
Veja na versão em vídeo aqui:
1- Uma nova perspectiva das guerras de independência de Moçambique
Mia Couto já abordou a diversas vezes as guerras civis e de independência de Moçambique. Desde o clássico Terra Sonâmbula, em que contam a história do menino Muidinga, até os últimos romances que tratam a questão sobre a perspectiva feminina a coleção Mulheres de Cinzas, Mia Couto tenta contar e recontar o passado de seu país. Desta vez, ele conta essa história da perspectiva de um filósofo, professor e poeta, militante de esquerda, que havia sido preso e morto por contar do regime de Salazar.
Veja nossa resenha sobre o livro:
2- O livro conta a história de um poeta
O romance conta a história e Diogo Santiago que é um intelectual moçambicano respeitado e de muito prestígio. Professor universitário em Maputo e poeta, ele volta pela primeira vez em anos à Beira, sua cidade natal, às vésperas do ciclone que a arrasou em 2019, para receber uma homenagem de seus conterrâneos.
Mas o regresso à Beira é também o regresso a um passado longínquo, à sua infância e juventude, quando Moçambique ainda era uma colônia portuguesa. Menino branco, ele é filho de um pai jornalista e poeta, e de uma mãe absolutamente prática e com os pés no chão. Do pai, recorda das viagens que fez com ele ao local de terríveis massacres cometidos pela tropa colonial, da perseguição e prisão pela polícia política, a Pide, e, sobretudo, de seu amor pela poesia. Entre vivos e mortos, Santiago revisita os personagens que fizeram parte de sua história.
Por isso, o livro vai incluir uma série de poesias inventadas e imaginadas para esse poeta por Mia Couto.
3- Inspirado em uma história real: um livro que rememora sua infância
Mia Couto, em Mapeador de Ausências, volta ao seu passado e a sua infância em Moçambique. Para isso, criou Diogo, escritor branco que retorna a Beira em 2019, após longo hiato, para receber uma homenagem. Ao mergulhar em memórias familiares, ele compreende a real razão da viagem: redimensionar o papel do pai em sua vida e sua participação na luta de libertação da ex-colônia de Portugal nos anos 1970. Sobre sua mãe e seu pai, inspiradores da história, Mia Couto disse em uma entrevista:
A minha infância foi um tempo que me deu autorização ilimitada: a de não sair nunca do espanto da descoberta do mundo e das pessoas. Os meus pais tinham uma vida remediada, sem nenhum luxo. Mas eles deram-me a mais valiosa das prendas: eternizaram a minha infância. E sugeriram que o próprio mundo está em permanente nascimento. A minha mãe era uma contadora de histórias não apenas porque conhecia o patrimônio de lendas e fantasias da sua pequena aldeia, mas, sobretudo, porque ela transformava tudo em histórias. O mais banal dos eventos convertia-se num episódio fascinante. Ela não conhecia a fronteira entre a realidade e a invenção, entre o que era público e íntimo. Ela parava na rua e toda a criatura anônima se convertia numa pessoa. Ela ganhava intimidade com o mais desconhecido dos cidadãos e trazia para casa uma manancial de confissões e de segredos alheios. Eu e os meus irmãos nunca nos cansamos de a ouvir lembrar os nossos episódios familiares. Porque os recriava de tal modo que escutávamos sempre pela primeira vez. O meu pai era um intelectual, um poeta, um homem de esquerda que sonhava com outros mundos. Mas foi a minha mãe, mulher de pouca escola, que mais me fez ser escritor.
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4- Uma história sobre questões raciais
Um dos pontos mais interessantes de O Mapeador de Ausências é trazer as questões raciais de uma perspectiva bastante complexa. Em geral, lemos essa história entre uma disputa entre colonizadores e os colonizados buscando sua independência. No entanto, no romance temos uma série de outras perspectivas. Dentre os brancos, temos os fascistas do governo salazarista e o exército formado por colonos portugueses, de outro temos uma série de portugueses, também colonizadores, que se opõe à colonização, militantes de esquerda, artistas, poetas, padres holandeses e aliados da resistência popular. Mia Couto conta também a história de pessoas negras nascidas em Moçambique de diversos pontos de vistas: desde aqueles que estão ligados à cultura tradicional dos povos originários até aqueles que receberam uma educação ocidentalizada, mostrando uma série de tensões e atravessamentos entre essas culturas.
5- O romance possui frases belíssimas
Mais um livro belíssimo de Mia Couto, confira uma das incríveis frases do livro:
Eis a minha doença: não me restam lembranças, tenho apenas sonhos. Sou um inventor de esquecimentos. (…) Estou doente, sou um escritor que perdeu a capacidade de ler e de escrever.
Antes, eu não existia; Agora sou invisível.
Por causa dessa impossível ausência, não aprendi nunca a ter saudade. Ou melhor, tenho saudades do meu pai apenas quando a mim mesmo me falto.
Em África não há distâncias. Há apenas profundezas.
O que conta não é a cova. É partilhar o peso do falecido. Nesse morto carregamos todos os vivos.
Para meu filho nenhuma coisa lhe pertence. Interessam-lhe as coisas que deixam de ser coisas, como aquele velho carro que ele insiste em conduzir.
Não acredito no luto, mas é sempre bom que alguém nos agasalhe a tristeza.
As autoridades portuguesas tinham retirado lições dos anteriores massacres e decidiram apurar o método: este novo massacre seria executado lentamente, tão lentamente como se, por um lado, não chegasse nunca a acontecer e, por outro, nunca parasse de suceder.
Naquele tempo eu já era o que hoje sou: um jogador sem jogo, ocupado numa eterna peleja contra mim mesmo.
Há pessoas que garantem que não veem raças, que só veem pessoas. Eis uma coisa bonita de se dizer. Mas neste mundo de hoje, meu querido neto, ser cego para as raças, pode ser uma maneira de não ver o racismo.
Os senhores já sabem: quanto mais medo se tem, mais ordens se dá. Quanto mais ordens se dá, mais ordens precisamos receber.
Alguém disse que a esperança alimenta multidões. Pois eu digo: o desespero cria exércitos alucinados.
Certa vez a minha vó perguntou-lhe:
– Uma coisa sempre me fez espécie Por que é que você, minha nora, nunca foi racista?
– Não sei – respondeu a minha mãe – Sempre foi muito distraída.
Alguns dos momentos mais felizes de sua vida foram passados nesse tempo tão infeliz. Aceitar que toda a nossa vida tivesse sido um inferno seria dar um prêmio aos opressores.
À esquerda estão os que morreram na guerra colonial, mais ao fundo estão os da guerra civil. Todos os outros – diz ele – simplesmente faleceram. A vida aqui é uma outra guerra – acrescenta. – A gente chega a ter vergonha de ser um sobrevivente.
Quando um regime começa a prender os poetas é porque esse regime está perdido. Se os senhores fossem inteligentes procediam exatamente ao inverso: concediam um prêmio ao Adriano. É assim que se cala um escritor.
As estradas de um filho são as costas de sua mãe.
Agora que já posso entrar na piscina, deixou de haver piscina. Esta é a metáfora da minha vida; Agora que já posso entrar, deixou de haver dentro.
Havia dois inimigos da inspiração poética: o primeiro era ser saudável num mundo tão doente; o segundo era ser feliz num mundo tão injusto.
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