Buchi Emecheta é uma brilhante contadora de histórias. Nascida em Lagos, na Nigéria, é autora de diversos romances que abordam questões relacionadas ao colonialismo, à educação de mulheres e que muito contribuíram para levar ao mundo importantes elementos a respeito dos modos de subjetivação de mulheres na Nigéria.
Cidadã de Segunda Classe se passa entre a Nigéria e o Reino Unido nos anos 60, a partir da história sobre a vida da jovem Adah. Acompanhamos a trajetória de Adah na Nigéria em busca de seu grande sonho, ir para o Reino Unido, mas ao acompanharmos o processo que transforma sonhos em realidade torna-se impossível fazer qualquer tipo de hierarquização que coloque o “lugar da mulher” na África num patamar abaixo do “lugar da mulher” na Europa. De uma maneira leve e frequentemente singela, a autora borra as fronteiras entre bom, ruim, civilizado, ultrapassado, correto, errado. As opressões e violências se transformam, não para dar lugar a uma experiência não violenta e livre, mas sim para que essas opressões e violências se apresentem e sejam sentidas de uma nova forma, muitas vezes mais difícil porque desconhecida. “Adah fora obrigada a percorrer todo o trajeto que separa Lagos de Londres para se dar conta dos fatos” e, da mesma maneira, também nós, leitoras/es, precisamos acompanhar os quilômetros percorridos por Adah para que se torne evidente que não há nada de propriamente civilizado ou melhor na vida que ela encontra quando chega ao seu destino final.
Leia AQUI a resenha completa do livro, que faz parte do projeto Mulheres do Mundo – uma escritora de cada país!
O NotaTerapia selecionou 14 trechos sensacionais do livro. Confira:
Boy era como Pa e Ma mesclados numa só pessoa, ali em pé. Ela também chorou, dessa vez não aos uivos, não para fazer um espetaculozinho vazio, mas lágrimas de verdadeiro pesar com a ideia de deixar para trás seu país natal. O país onde Pa estava enterrado e onde Ma jazia em silêncio eterno. Da vida que conhecera um dia, só restavam Boy e ela. Uma vida que nunca mais seria a mesma. As coisas estavam fadadas a mudar, para o bem ou para o mal, mas com certeza nunca mais seriam as mesmas.
Os brancos que via não pareciam pessoas capazes de fazer piada com coisas como a morte. Tinham um ar remoto, felizes de um modo indiferente, mas decididas a manter distância.
Você deve saber, querida jovem lady, que em Lagos você pode ser um milhão de vezes agente de publicidade para os americanos; pode estar ganhando um milhão de libras por dia; pode ter centenas de empregadas; pode estar vivendo como uma pessoa da elite, mas no dia em que você à Inglaterra vira cidadã de segunda classe. De modo que você não pode discriminar seu próprio povo, porque todos nós somos de segunda classe.
As outras garotas eram assistentes, muito jovens, de pernas longas e magras; para Adah, quase todas pareciam ser só personas. Diferentemente da chefe, todas acompanhavam atentamente as tendências da moda. Faziam Adah sentir-se deslocada, por isso Adah nunca criou maior intimidade com elas. De certo modo elas a faziam sentir-se inferior, sempre falando sobre roupas e namorados. Adah teria gostado de participar dessas conversas, pois era da idade delas, mas sabia que se ela abrisse a boca suas palavras estariam impregnadas de amargura. Teria dito Pas colegas que o casamento não era um mar de rosas, mas um túnel de espinhos, fogo e presos em brasa. Ah, sim, teria dito muitas coisas às colegas. Mas para que, ela se perguntava, estragar os sonhos das outras pessoas? Preferia ouvi-las e sorrir, sem se envolver no assunto.
As coisas também estavam difíceis para Francis. Nunca, em toda a sua vida, ele tivera permissão para cometer os próprios erros, já que nunca tomava suas próprias decisões. Sempre consultava a mãe, o pai e os irmãos. Na Inglaterra era forçado a se virar com os vizinhos nigerianos.
Adah não conseguia parar de pensar no que havia descoberto: que os brancos eram tão falíveis quanto qualquer pessoa. Havia brancos maus e brancos bons, assim como havia negros maus e negros bons! Por que, então, eles diziam que eram superiores?
Era esse o resultado da Nigéria ter sido governada durante tanto tempo pelos ingleses. A inteligência da pessoa era avaliada pela forma como ela falava inglês. Mas não importava nem um pouco se o ingleses eram ou não capazes de falar as línguas dos povos que governavam.
Não mais que dois dias antes Francis declarara que possuía mais costelas que ela, porque Deus Jeová tomara uma das dele e a quebrara em sete pedacinhos para com elas fazer a caixa torácica de Adah. Essa era a razão pela qual em inglês ela era chamada de wo-man, porque ela fora construída a partir das costelas de um homem, um man, como ele próprio. Fazia algum sentido quando ele estava falando, já que woman era uma palavra que podia ser considerada uma palavra composta, wo e man. Qual seria a interpretação de Francis para a palavra que designava mulher em igbo ocidental, opoho, que não tinha a menor relevância para a palavra que designava o ser humano masculino: okei? Francis teria de inventar uma outra história para as duas palavras, porque a explicação da estrutura das costelas não se aplicava nem um pouco.
Adah tentou se lembrar quem, na Grã-Bretanha, dissera a eles que em lagos as pessoas não precisavam de coisas de boa qualidade. Se lembrou de observar os biscoitos que a dra. Noble dava a Kimmy, seu cachorro preto. Tocara os biscoitos e, se não fosse o fato de haver gente olhando, teria provado um deles. Aqueles biscoitos não eram do mesmíssimo tipo vendido às pessoas na África? Aqueles, especificamente, não eram os mesmíssimos que seu Pa e seus tios costumavam levar para ela e seu irmão Boy do acampamento do exército, depois que a guerra acabou?
O mundo inteiro parecia desigual, tão injusto. Algumas pessoas eram criadas com todas as coisas boas prontinhas à espera delas, outras apenas como enganos. Enganos de Deus.
Para começo de conversa, ela própria havia amado Francis? Só começara a amá-lo, a sentir carinho por ele mais tarde. mas o amor tivera curta duração, porque Francis não fizera nada para mantê-lo vivo.
O homem que vinha chegando era chinês. Então ela não estava vendo os olhos dele e o formato de sua cabeça, redonda como uma calabaça das que usavam na Nigéria? Então por que entrar em pânico? O homem, médico ou não médico, também era um cidadão de segunda classe e não poderia tratá-los com ares superiores. As palavras de Francis não foram de maior ajuda para Adah, mas ela gostou de ouvi-las.
Mesmo numa rua escura, uma rua tão escura quanto a Willes Road, em Kentish Town, dava para ouvir o canto dos pássaros. Numa manhã de segunda feira, quando a família ainda dormia, Adah reuniu seus apetrechos de higiene para ir tomar banho. Como não havia instalações para banho na casa onde eles viviam, Adah utilizava os banhos públicos da Prince of Wales Road várias vezes por semana. Foi durante uma dessas visitas, na segunda feira, que viu aquele pássaro cinzento, pequenino, solitário, mas satisfeito em sua solidão. Adah ficou imóvel do outro lado da rua olhando o pássaro cinzento cantar, cantar, pular de um parapeito para outro, feliz em sua liberdade solitária. Adah ficou intrigada com o bichinho. Imagine só, comover-se com uma coisa tão miúda quanto aquele pássaro cinzento! E isso quando menos de ano antes vira pássaros mais selvagens, espalhafatosos em suas cores, empolgados com seus cantos. Na época ela nunca se dava conta da existência dos pássaros nos quintais das casas de Lagos. Pensou consigo mesma: imagine se não existisse inverno, que é quando todo ser vivo parece desaparecer da face da terra; os pássaros estariam sempre à volta das pessoas e se tornariam uma coisa trivial, e ela não teria percebido nem admirado aquele que estava ali, nem ouvido seu canto fluido. Não seria disso que estavam precisando na África? Um longo, longo inverno, um período em que não houvesse o brilho do sol, nem pássaros, nem flores silvestres, nem calor? Quem sabe assim ficássemos um país de introvertidos, e quando a primavera chegasse estivéssemos preparados para apreciar o canto dos pássaros?
Para ela, escrever era como escutar boa música sentimental. Não estava interessada em saber se o livro seria ou não publicado; só lhe importava o fato de ter escrito um livro.
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