Os 10 melhores poemas de Ulisses de Carvalho que refletem sobre as transparências e os devires da vida

Aproximar-se da poesia de Ulisses de Carvalho é uma tentativa de se aproximar da transparência, daquilo que desvanece diante de nossos olhos e sobre nossas mãos. Como na utopia de Eduardo Galeano, a vida para Ulisses é este traçado no infinito que, quanto mais nos aproximamos, mais o horizonte se afasta de nós. Ou então, quem sabe, ainda, como para os pré-socráticos, que tinham a poesia – e portanto a vida – como um Rio que nunca é o mesmo, sempre se arrasta, sempre se desfaz, e nunca permanece nem por um ínfimo tempo de olhar. Neste sentido, suas poesias transitam entre um corpo e uma voz ou, como o próprio diz, entre “suas extremidades” e suas metamorfoses. Não é à toa que seus poemas, a todo tempo, giram em torno destas questões, como a ideia de impermanência, dos devires – palavra que na filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari forma a base de um pensamento: uma espécie de vir a ser que se dá, anacronicamente no passado e como intensividade no presente.

Entretanto, os poemas de Ulisses de Carvalho também buscam, nestas confusões de tempo, encontrar um espaço de acolhimento, uma habitação. Não à toa ele investiga sobre os rumos, sobre os paradeiros, mesmo que eles estejam na litosfera, ou nas órbitas do universo. Que universo? Creio que todos, desde o universo do corpo e suas microcélulas que como os grande arquitetos engendram esta máquina de devires, assim como o desconhecido, a antimatéria, os reflexões de um não eu (nem um mim) que habita o mundo.

Ulisses de Carvalho, um poeta que, apesar de ter nascido na cidade de Torres, no Rio Grande do Sul, não busca galgar o topo das torres do céu. Isto é bom, pois ele busca o topo da torre de babel, da confusão de língua, de planetas, confusão de mundos. Sem dúvida, um poeta contemporâneo que vale a pena conhecer.

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(im)permanência

meu corpo, a minha voz
meus tropeços, tudo em mim
será até quando,
um somar anuários
– de carne e osso
sou sujeito a durar pouco
(o que vinga a existência,
acesso ao infinito, é pedra:
em silêncio impondo sua forma,
não murcha sob – ou sem – a água)

*

rumo

não bordo com lantejoulas
as pontas dos meus pés
não penduro constelações
nas minhas extremidades
para continuar a viagem
nesta esfera rutilante
(rotunda a girar)
sob minha carne fraca
não bebo da água
de um deus do céu
nem apascento demônios
à luz dos raios das manhãs
só carrego mais ao fundo
a poeira das sujeiras
dos submundos das bagagens.

*




dos devires
nada é.
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas,
das igrejas,
os lençóis sujos
dos puteiros,
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas
das cobras,
dos seres vivos
à matéria inorgânica,
tudo denuncia
a passagem do tempo:
existir é transmutar.

*

paradeiros

alguns caminhos
são tortuosos:
levamo-nos
(ou nos trazemos)
com lentidão ou urgência
– de tão labiríntica a vida,
nós nem sempre sabemos
onde (e quando) vamos parar.

*

órbita

somos mais
do que o que dizemos
ou ainda podemos
ser menos –
dizer é também
ficar restrito
como olhar para trás
da órbita
e enxergar
apenas um detrito
do universo inteiro
que por dentro temos.

*




coexistência
não tenho classe.
não tenho bons modos.
não vim para ser
complacente
a qualquer custo.
não sou água
com açúcar.
não sou indireto.
não tenho medo
do que quer dizer
aquilo que digo.
não me meço
por números,
diplomas,
curtidas,
cédulas.
não valho,
para mim,
o que eu tenho,
eu sou, para mim,
o que eu sou.
não sou um autômato.
não sou cidadão de bem,
admito que erro também.
entre a matéria
e o impalpável,
a convivência
é uma arte
– e a arte também
é indômita, espinhosa.
não sou unilateral.
assumo minhas sombras:
em cada um de nós
brilha um sol por dentro
e há também o escuro
sombrio das madrugadas.

*

gataria

no vão daquela hora
em que a noite desaba
sobre o dia enegrecido
resta um outro segundo
para o tempo do mundo
guardar todos vocês
noutra madrugada
no meio do nada
pelas ruas vazias
encharcadas de sereno
sobre alguns gramados
em todos os telhados
um deles é branco
outro é preto
todos pardos.

*

pareidolia

assisto ao final desta manhã:
sob o mesmo céu
os mesmos galhos
dessas mesmas árvores
balançam as mesmas folhas
(presas à vida)
e enquanto um velho
que fala ao telefone
carregando rugas
e sacolas
nas mãos
vai sem pressa
sei lá para onde
(uma cara de:
“Ivone, vou me atrasar
para o almoço”), penso:
nesta cidade do Sul
da América do Sul,
onde o velho e eu
dividimos o mesmo céu,
há um cavalo gigante
sobre as nossas cabeças
– sim, sou desses
que veem desenhos nas nuvens.

*

desregrar-se
só se encontra
quem se perde
(tantos são
os caminhos
tortos)
andar na linha
qual um trem
é saber aonde ir
mas também
correr o risco
de só andar
preso ao chão
e para sempre
levar consigo
uma aflição
permanente
da possibilidade
de descarrilar-se.

*




antimatéria

antes de tudo, escrevo.
do contrário, apenas rabiscaria
papéis em um escritório.
contaria cédulas e moedas
em um banco.
ou trabalharia em uma repartição pública.
chegaria em casa às vinte horas,
faria a janta e assistiria
à novela,
a um filme ou ao jogo de futebol.
depois, sem pensar
em nada de mais,
sem chance para as lucubrações,
apenas esvaziaria da mente
o longo dia,
números, contas, asfaltos, obrigações.
veria a cama,
que seria somente uma cama,
fecharia os olhos e dormiria.
no outro dia, calçaria os sapatos,
escovaria o cabelo, os dentes,
tomaria o café da manhã
lendo o jornal,
que seria somente um jornal,
e voltaria ao local de trabalho,
talvez depois de brigar
com o relógio,
talvez pontualmente.
viveria assim, burocraticamente.
e enchendo-me de cotidiano,
até o limite onde eu transbordaria,
haveria o risco de em mim
ainda caber um novo hábito:
entre o céu e a terra,
enxergar apenas o que é palpável.

*

E, quem sabe, colocar um poema extra? Que tal? Vamos lá!

litosfera

dividimos em pensamentos
nosso mundo – conferindo-nos
asas que nos movem e raízes
que nos aprofundam
na realidade de uns solos
e uns sonhos, grandes
territórios não mapeados –
e desde há muito,
também, rente às retinas,
o peso avaliado das coisas:
rochas, vulcões, Américas,
indígenas, linhas de Nazca,
moais, Taj Mahal, castas,
ossos de dinossauros,
Mona Lisa sorrindo
atrás do vidro,
tectônicas placas
em movimento:
um planeta inteiro
– em camadas –
(n)a nossa percepção.

*

Para mais poemas, acesse: www.dentre-tantos.blogspot.com



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