Tarja Branca: o que as crianças (e os brasileiros) ensinam sobre a felicidade?

“Brincar é urgente!”, diz a coreógrafa Andrea Jabor. Essa afirmação, assim, descontextualizada, pode fazer com que muitos narizes se torçam. Brincar, afinal, é ócio – é aquilo que as crianças fazem enquanto os adultos seguem nas suas obrigações ininterruptas. Mas o que essa atividade, ou melhor, significa na nossa atual conjuntura?

Os manuais do bem-estar hoje ocupam grande parte das principais prateleiras em livrarias. Esses livros, tachados como “auto-ajuda”, podem ser bem diversos em temática.  O site de vendas online Amazon, por exemplo, divide esse nicho em mais de 25 categorias, como “criatividade”, “emoções”, “felicidade”, “criança interior”, “sucesso”, “sexo”, “espiritualidade”, entre outras. A ampla gama temática da auto-ajuda e o recorde de vendas desses livros, que comumente figuram nos rankings dos mais-vendidos, são dados relevantes para pensarmos nas dificuldades da vida contemporânea. Mais ainda, para pensarmos na incidência alarmante de suicídios e de diagnósticos de depressão e ansiedade nos últimos tempos, um sinal claro de descontentamento com nosso estilo de vida.

Dentre os vários sintomas de um mundo hiper-conectado como o nosso, há, paradoxalmente, um alheamento às conexões humanas. E não estou falando de quando checamos o celular incessantemente enquanto dividimos a mesa com amigos, mas no nosso dia-dia cada vez mais individualizado. Salvos os devidos limites entre aquilo que é nos é subjetivo, produto da nossa história, e o que é patologia coletiva, não é à toa que, nesse contexto, vendam-se livros e remédios como antídoto para a nossa inércia.

Em resposta a algumas dessas questões, o documentário Tarja Branca reivindica um antídoto que, apesar de simples, pede uma reforma profunda: a reconexão com a criança. Dirigido por Cacau Rhoden, o filme de 2014 reúne artistas, educadores, psicanalistas, jornalistas, pesquisadores, dentre outros adultos que encontraram propósito na arte de brincar. Remontadas às raízes indígenas e africanas do Brasil, é possível identificar a alegria e a beleza que se manifestam na cultura popular: as brincadeiras de roda, os jongos, o frevo, os brinquedos manufaturados… Para a pesquisadora Lydia Hortelio, esses elementos da cultura popular (que por esse qualificativo já soa estigmatizada), resgatam o encantamento da criança pela vida. Nesse sentido, o adulto reconecta-se com o destemor e a sensibilidade, mais característicos da infância, por meio do lúdico artístico.

O documentário percorre entrevistas com adultos brasileiros, de classes sociais diversas, cujas infâncias, definitivamente, foram diferentes, mas que atualmente reconhecem a urgência do brincar e de tudo o que ele implica: a espontaneidade, a alegria, a plenitude no agir e a criatividade. Além disso, o brincar também exige coragem. O termo “coragem” significa “ação do coração”. Em certo sentido, é a partir dessa lógica do coração que uma criança saudável ocupa seus espaços. Diferentemente de nós, adultos, um pouco caducos e mais medrosos, a criança vive em inteireza. Ao empinar pipa, por exemplo, uma criança mobiliza todos os seus sentidos para realizar essa brincadeira e se permitir uma catarse. Podem haver vários impedimentos. A linha pode enroscar em outros lugares ou não ser o suficiente para voar tão longe. Mas a criança também acolhe a possibilidade da falha e, com coragem, persiste na sua tarefa – afinal, se desistisse, também não poderia experimentar a sua alegria. Fazendo uma analogia à pipa, a pedagoga Maria Amélia Pereira afirma: “Brincar é usar o fio inteiro de cada ser”. E a inteireza, como bem nos ensina a criança, vai muito além da felicidade tal como nos é vendida.

A felicidade tornou-se um produto à medida que foi padronizada e prometida por programas de tv, aplicativos, livros e filmes. Na tentativa de responder à pergunta “O que você precisa para ser feliz?”, esses meios costumam recorrer à planos normatizados, sempre inclinados à área de atuação do autor: alimente-se bem, medite, pratique exercícios físicos, etc., etc. Apesar da inegável necessidade desses aspectos na vida do ser humano, a felicidade permanece uma realidade longínqua (e muitas vezes inalcançável) se, no caminho, há uma infinidade de passos a serem seguidos.

No seu artigo “Como os millennials se tornaram a geração do esgotamento”, a jornalista Anne Helen Petersen aponta como nossa vigente paranoia pela produtividade e pela otimização do tempo criou uma geração de jovens adultos em que o esgotamento é endêmico. Numa sociedade que preza pelo aproveitamento máximo do tempo, até o bem-estar se transforma numa obrigação – afinal, como produziremos sem que estejamos centrados e alegres? E se não produzirmos, como alcançaremos nossos objetivos e seremos felizes?

Preocupados com as consequências dessa mentalidade para as futuras gerações, que, enquanto crianças, têm suas rotinas “otimizadas” com atividades extracurriculares e passam bem mais tempo interagindo com a tecnologia do que com outras crianças, os entrevistados em Tarja Branca sugerem que o “remédio”, no final das contas, é mais simples do que se parece: a revolução pela não-seriedade. Em outras palavras, a revolução da criança. No rasto dessa revolução, há, para os brasileiros, uma reconexão com a sabedoria popular, porque implica valorizar o espírito da brincadeira e do humor que vemos manifestadas nas culturas locais. Esse espírito muito conflui com o fazer artístico, afinal, quem quando criança nunca ouviu as expressões “pintar o sete” e “fazer arte” quando viraram a casa de cabeça para baixo? Em outras palavras, é uma revolução pela ausência de um propósito utilitarista.

O documentário de Cacau Rhoden vai na contramão das tendências mercadológicas para falar da felicidade – até porque essa palavra não é tão recorrente no vocabulário infantil quanto no dos adultos. Para as crianças, que entendem experiência humana como uma experiência de fato (e não uma maratona dos 50 metros), em que há lugar para tudo – e não só para as conquistas –, não existe momento e hora para brincar. O corpo deixa de ser uma entidade utilitária para realizarmos nossas tarefas; é um templo. As metas e as tarefas deixam de ser minuciosamente planejadas; são apenas vividas pelo ser “em seu fio inteiro”. O tempo deixa de ser otimizado; ele só não existe. Nos mestres de jongo, nos dançarinos de frevo, nos poetas e nos feirantes recifenses de Tarja Branca entendemos o que uma parcela marginalizada da cultura brasileira guarda de revolucionário – e ela contradiz as falas best-sellers, globalizadas e hiper-conectadas sobre a felicidade.

De forma ainda mais subversiva, a intenção do documentário não é elencar o brincar como mais uma das necessidades na nossa infinita lista de afazeres. Quando Jabor afirma que “Brincar é urgente”, a coreógrafa refere-se mais à nossa necessidade de reconhecer perspectivas não-institucionalizadas – porque populares – de viver. Trata-se principalmente de identificar que o consumismo, a evolução tecnológica e a hipervalorização do intelecto agem como mecanismos da nossa infelicidade, mesmo que prometam o contrário. Brincar não é urgente, não é necessário, assim como também não é sério. Brincar, por si só, não fará com que ninguém alcance metas, melhore sua alimentação e alcance um estado eterno de felicidade. Em suma, ele não possui uma justificativa. Mas é justamente na ausência dessa justificativa que nascem as bonitezas, livre de contraindicações, nascidas de uma coragem sem limites – e de uma vivência inteira do fio de cada ser.

Imagens: cenas de Tarja Branca

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