5 poemas e 1 vídeo-poema de Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas

Angélica Freitas nasceu no Rio Grande do Sul em 1973. Ela é poeta e jornalista. Publicou na América Latina, Estados Unidos e Europa e também tem sido publicada em inúmeras revistas eletrônicas. Angélica é coeditora da revista Modo de usar & Co, uma revista fabulosa para amantes da literatura (foi lá, inclusive, que conheci Bénédicte Houart, poeta nascida em Bruxelas cuja escrita é potente, irônica e, resumidamente, sensacional. O NotaTerapia escreveu sobre ela AQUI).

Um útero é do tamanho de um punho, publicado em 2012, pela Cosac Naify, foi vencedor do prêmio de melhor livro de poesia de 2012 da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). O livro dialoga com o feminismo e aborda temáticas “do feminino”, mas não no sentido de essencializá-lo e sim, pelo contrário, colocando no centro das forças que o produzem, apontando para as múltiplas possibilidades de se viver o que se convencionou chamar de “o feminino” ou, enfim, de “ser mulher”. Com ironia (e autoironia), força e coragem, Angélica Freitas trata de temas essenciais para a atualidade, fugindo dos lugares-comuns e de um certo “megalomanismo” comum no gênero. É um livro autodestrutivo, no sentido de que, enquanto constrói propostas, as faz escorrer pelos dedos, propondo novos arranjos e novas leituras.

Um útero é do tamanho de um punho – o mesmo punho que agride. É a mesma violência: do soco, as imposições de gênero, as desigualdades entre mulheres e homens, a competição entre mulheres que aprendem que somos inimigas. Mas é também na potência da violência, naquilo que irrompe, que se encontra a possibilidade de reagir à isso tudo, de transformar-se (transformar seu útero, mesmo que você seja uma mulher sem um – afinal, não é ele que te torna mulher) no punho que soca, que desmonta o que está dado pra criar novas possibilidades de existir.




O NotaTerapia selecionou 5 poemas de “Um útero é do tamanho de um punho” para, quem sabe, instigar a(o) leitora(or) a ler o livro todo e descobri em si/consigo a força para ser-além-das-barreiras-do-mundo-e-do-corpo. Confira:

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
celso pedro luft

uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam

loucas louquinhas
tantãs da cabeça
ataduras banhos frios
descargas elétricas

são porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
são muito convenientes

interna, enterra

uma mulher gostava muito de escovar os dentes
escovava-os com vigor
escovava-os de manhã de tarde e de noite
os três melhores momentos do dia

escovava-os com muita pasta
num movimento circular
alternando as arcadas
enquanto recitava

para dentro para baixo
o sutra prajnaparamita
ou a canção if i had a hammer

ao cuspir sentia-se muito melhor

queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas

mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixem disso?

pois agora eu virei mulher
me operei e virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher

a mulher é uma construção
deve ser

a mulher basicamente é pra ser
um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor

particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção
com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério
dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)

você é mulher
e se de repente acorda binária e azul

e passa o dia ligando e desligando a luz?
(você gosta de ser brasileira?
de se chamar virginia woolf?)

a mulher é uma construção
maquiagem é camuflagem
toda mulher tem um amigo gay
como é bom ter amigos

todos os amigos têm um amigo gay
que tem uma mulher
que o chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde
as psicólogas do café freud
se olham e sorriem

nada vai mudar –

nada nunca vai mudar –

a mulher é uma construção

Confira, abaixo, um vídeo com um poema do livro, produzido pela oi kabum! Escola de Arte e Tecnologia de Salvador:



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