Leituras #31: Meia-Noite e Vinte, de Daniel Galera

Autor: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras, 2016
Páginas: 202

O calor da rua, mesmo nos poucos segundos necessários para atravessar o quintal até a edícula, me massacrou de tal forma que perguntei se aquelas não seriam condições hostis à vida. A fragilidade do homem era tocante. (…) Éramos inadequados àquela natureza. Não espantava que desejássemos destruí-la.

Daniel Galera.

A internet foi como uma simulação do que seria a espontaneidade da vida numa explosão lamarckiana. BOOM! E surgiu a primeira proteína, que cresceu, se desenvolveu, complexou-se e em algum momento se incorporou às naturezas já existentes, as nossas, reformulando todas as gerações que estariam por vir. Surgiram sites, blogs, fanzines eletrônicos, redes sociais e hoje somos já engolfados por aplicativos no celular. É dessa geração que Daniel Galera faz parte e é tanto nela quanto dela que ele faz surgir voz em seu último romance, lançado agora em 2016, “Meia-Noite e Vinte”.

Para quem não conhece, Galera é um dos starboys da literatura brasileira atual. Prometido pela revista Granta, prestigiado na FLIP, nascido nos fanzines literários antigos e agora aguardado a cada livro, o paulistano criado como gaúcho ganhou mais notoriedade com seu último romance, Barba Ensopada de Sangue. Contudo, é em Meia-Noite e Vinte que Galera atinge uma maturidade diferente tanto como escritor como quanto um analista do que é feita nossa geração.

A história acompanha Aurora, Emiliano e Antero, três amigos que se reúnem após a morte de Dante, com o qual formavam um fanzine eletrônico muito famoso nos anos 90, o Orangotango. Em primeira pessoa, Galera nos permite experienciar os (des)sabores de todos: Aurora é doutoranda na área biológica e tenta uma aprovação na banca, Emiliano é um jornalista mais fechado e talvez o mal sucedido do grupo e Antero é o típico rebelde de movimentos artísticos que se converte em publicitário rico e requisitado. Essa estrutura de exploração biográfica e opinativa das personagens, formando, a partir de cada, uma cadeia de conhecimentos e visões sobre o mundo, se afasta da jornada solitária de Barba Ensopada de Sangue  e se aproxima de Mãos de Cavalo, um dos primeiros romances de Galera, no qual somos apresentados a uma mesma pessoa em três diferentes momentos de sua vida.

O romance, porém, mantém-se numa proposta ambiciosa de Galera em tentar definir uma geração pós-modernista, como o próprio nome sugere: Meia-noite e vinte, foi dada a virada de um ciclo, entrou-se em outro completamente diferente, no qual estamos apenas no começo, ainda. A insegurança, a indecisão e a extrema ansiedade de tentar imaginar o que virá após essa meia-noite é o grande conflito do livro. A internet, que também uniu os amigos, é o ambiente em que eles são espionados pelas lentes da mídia e da curiosidade pública, o ambiente onde reina pornografia e sexo online (ambos de forma não necessariamente negativa) e o qual cria reações concretas no mundo real, tanto ativas quanto emocionais. Reina no livro um sabor solitário, irônico por estarem todos conectados e unidos graças à maior das revoluções na comunicação.

Essa solidão se mostra quantitativamente, tanto no mundo real pela superpopulação humana como no virtual, pela numérica grandiosidade de figuras anônimas e pela quantidade arrebatadora de conhecimento e informações. Aurora e Antero são grandes exemplos. Ela por burocratizar seu sonho científico, mergulhando-o na rotina e no mar de informações e produções científicas. Antero por tornar-se um publicitário que, rebelando-se ao mainstream, é usado como parte fundamental e indissociável dele.

Nessa carta eu lhe disse, basicamente, que Sísifo tinha sorte de ter vivido na Antiguidade. Se vivesse agora, saberia demais a respeito da pedra, da montanha, e de si mesmo para se entregar eternamente ao absurdo de sua tarefa. (…) Se fosse cria de nosso tempo, Sísifo leria O mito de Sísifo. (…) Nem nos deuses ele poderia seguir acreditando. Não retaria nem a obediência. restaria somente a prisão, a mesmice da tarefa.

A natureza interpõe-se nesse processo, como na citação usada acima, ora como pacificadora, ora com a fúria de um deus disposto a reagir violentamente às profanações. O pós-modernismo então sai do psicológico e entra no quantitativo e no qualitativo. Porque se a internet cria um novo ambiente de comunicação e comportamento humano, resta à natureza a memória do que tornamos o mundo e do que nos tornamos, naquilo que nos faz essencialmente gente e barro. Galera faz isso através das pequenas contraposições ao longo do livro e mesmo quando a natureza se faz completamente ausente, como numa cena de masturbação com inúmeros vídeos pornográfico, ela faz-se sentir inevitavelmente no gozo da personagem.

Um rato era um animal belo, se o considerássemos isoladamente, distante de outros ratos e de sua associação a doenças e pragas históricas. Um bichinho macio e curioso, inteligente à sua maneira, feroz quando ameaçado, uma criatura passível de ser admirada. A partir de determinada concentração, o horror brotava. Milhares de ratos devorando uns aos outros no porão de um navio abandonado à deriva era uma cena repulsiva, digna de filme de terror. Toda infestação de organismos tinha capacidade de causar terror no coração dos humanos.

Com aquele que considero o melhor dos finais nos livros do Galera, Meia-Noite e Vinte é um dos mais representativos retratos de uma geração pós-moderna e suas ansiedades com o futuro absolutamente desconhecido por ser tão novo.

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