Ao chegar na Zona Portuária do Rio de Janeiro, você encontrará resquícios de um dos maiores complexos escravagistas do Brasil: o Cais do Valongo. Por favor, apenas continue em frente, e em outro momento retorne para conhecer um pouco mais dessa história. Por ora, vamos passear um pouco pela história de Machado de Assis.
A partir de agora, o caminho ficará um pouco mais severo e íngreme, afinal, você começará a subir a Ladeira do Livramento, na Gamboa. Não se preocupe por ora, este será um curto percurso até a casa número 77.
Você irá se deparar neste endereço com paredes sujas e uma estrutura massacrada pela ação do tempo. Este aspecto é resultado de um silêncio que se mantém há muitos séculos e seus efeitos são nefastos. Este lugar poderia nos conduzir para a história de qualquer pessoa, mas calhou de ser a de Machado de Assis.
A casa está sendo ocupada por pessoas que viviam em situação de rua e encontraram nesse espaço uma possibilidade de ter um pouco de dignidade. O Bruxo do Cosme Velho, continua a emaranhar histórias e confundir os pobres transeuntes deste mundo.
Esta não é a única casa em que “supostamente” Machado de Assis viveu. É na verdade a primeira de outras três casas que já foram demolidas ou se encontram em processo de deterioração, apesar da intervenção do Ministério Público, que se debruça veemente para desocupar suas mesas com esses papéis lacrimosos.
Machado de Assis também não é a primeira personalidade a ter sua história soterrada pelo descaso. É bem verdade, que lembramos com recorrência do Bruxo do Cosme Velho por conta da sua importante participação na criação e consolidação da Academia Brasileira de Letras.
Este ano, ele até ganhou uma nova biografia que destaca sua negritude, borrada nas biografias anteriores. Mas o sistema de apagamento coordenado pelo racismo é sagaz e minucioso, peca apenas pela presunção.
Pensando bem, quanto menos se sabe sobre a história de alguém, menos essa pessoa existe. Aos poucos relembramos menos, falamos quase nada e quem sabe consigam fazer com que histórias como a do Machado de Assis também sejam riscadas dos livros.
Machado de Assis: o primeiro importa saiu do túmulo
Vejam como a casa da Ladeira do Livramento, n. 77 é essa prova contumaz do nascimento de um dos maiores nomes da literatura brasileira, que por quase um século teve sua negritude apagada, mas que era preto, de uma família pobre que vivia de favor na chácara de um coronel (e que depois, virou favela) e agora, se torna cortiço.
Não é que estão deixando a história fazer seu revés e com a ironia peculiar da escrita machadiana, devolvem o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras para o lugar de onde nunca quiseram que ele tivesse saído? Vejam só, os vermes se enroscam nos papéis e deixam seus rastros para que esqueçamos mais uma existência negra.
Agora que você chegou no destino, quero convidar você a uma prática criativa, na qual sugiro imaginar este primeiro imortal a se revirar no túmulo. Elegantemente ele se levanta em meio à terra e ao húmus produzido ali, caminha pela cidade do Rio de Janeiro a se deslumbrar com as cores, a nova arquitetura, os novos nomes de ruas, e então ele busca o lugar onde viveu até o dia da sua morte em 1908.
Não há nada lá… nem escombros do seu último lar. Então, segue para sua residência na Rua dos Andradas e descobre que está tudo diferente. Desesperançoso, porém, ainda de pé, dirige-se à Ladeira do Livramento. Encontra ali outras pessoas vivendo neste lugar. Ele se senta em uma cadeira, assiste uma criança brincar e uma mulher girando um gole de café frio no fundo de uma caneca. Percebe que ainda há algo dele ali, mas suspeita que não haverá mais nada em breve.