“Os meus mortos pedem nomes”: a importância de nomear e dar voz aos nossos ancestrais, por Fabiane Albuquerque

Este livro poderia ser uma ficção. Afinal, a escrita de Fabiane Albuquerque nos cativa desde as primeiras palavras que compõem seu mais novo livro, Os meus mortos pedem nomes (2025) que faz parte da “coleção ninguém é uma ilha” publicado pela Hecatombe/ Urutau.

Em um texto que intercala conceitos acadêmicos, a voz da autora e tantas outras vozes silenciadas ao longo do tempo nos convida a repensar nossas histórias e a cutucar nossas memórias para compreender uma pergunta que considero central: porque eu não sei quase nada sobre meus ancestrais?

O texto escrito em primeira pessoa é dividido em nove capítulos distribuídos em 238 páginas, que vão desde os resquícios pensados pela autora em sua própria história até uma ode ao ressentimento, que a movimenta neste processo de falar e dar nome aos seus mortos.

Seu arcabouço teórico é extremamente vasto e é impressionante e quanto ela consegue ao longo do texto organizar o pensamento e concatenar todas as suas ideias com os conceitos trabalhados por intelectuais negros contemporâneos e clássicos.

Me conectei com a Fabiane de maneira orgânica e porque não dizer, acadêmica, já que também prezo pela escrita de si e pela escrevivência, ciente de que o meu discurso não deve está distante do meu viver, por isso, peço licença à pessoa leitora, para compartilhar minhas impressões sobre este texto também em primeira pessoa.

Convidando os mortos para esta discussão

É com a morte e a convivência com os mortos que Fabiane nos introduz neste ensaio, visto que é possível acessar arcabouço teórico e as escrevivências da própria autora, bem como as vivências de tantas outras pessoas que não puderam contar suas próprias histórias. Entendo, portanto, que é possível dar nomes aos nossos mortos como é percebido na introdução:

“A morte sempre rondou as memórias e as histórias da minha família, de forma a insinuar-se a qualquer momento, fosse num choro reprimido, nas lágrimas jamais derramadas quando deveriam ou no silêncio com relação aos algozes. A morte era o ponto nevrálgico do sertão mineiro, onde passei parte da infância. Acontece que uma coisa é conviver com a morte, carregá-la na memória e na vida, outra é poder dar nomes aos defuntos. Desta última parte, somos escassos, porque, além de nos impedir o direito de lembrar, aquele de saber é um grande obstáculo (p. 23)”.

Nossos mortos não têm nome. Nem nome, nem história, e atualmente é possível compreender ao menos em parte os fundamentos dessa condição, de não sabermos quase nada sobre nosso passado, nem mesmo o nome das nossas pessoas, de nossas famílias, nossos ancestrais. Se ao menos não tivessem em 1891, mandado queimar os arquivos da escravidão, teríamos ainda boa parte desses documentos tão preciosos, que não nos libertariam da dor, mas poderíamos direcionar para um nome, quem sabe rostos e suas identidades.

Percebi que Fabiane Albuquerque também possui pouquíssimas informações sobre os seus mortos, mas uma coisa é certa e a isso ela se apega: os seus mortos vieram do sertão do Brasil, o que delimita de alguma forma não apenas uma morte física para os seus entes, como também uma morte social, como ela relata no capítulo Dos Meus Dois Sertões:

“Repito: sou fruto de dois sertões, talvez até mais, na impossibilidade de traçar a trajetória dos meus ancestrais dentro do Brasil. Ser de família sertaneja pobre é ser fixada, real e simbolicamente, no lugar da morte e, quando se deparam conosco, executam-nos sem remorsos. Conviver com a morte social nunca foi fácil. Dela, pouco se discute, mas se morre. Meu pai nunca foi chamado pelo nome em São Paulo ou em Minas Gerais. Era sempre o “Paraibano” ou o ‘Nortista’ (p. 58)”.

A autora dá conta de ser de dois sertões: o paraibano e o mineiro e como não poderia ser diferente, caminha ao encontro de alguns dos maiores nomes da literatura brasileira, como, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa, do qual discorda sobre um ponto muito específico, como pode ser lido no trecho a seguir:

“Aconselhou-me um padre da paróquia de um bairro de classe média, onde também vivi, como empregada da minha tia, a buscar uma ordem religiosa ligada à Teologia da Libertação. A proposta me soou interessante, embora eu não soubesse do que se tratava. Libertação, o contrário do que Guimarães Rosa dizia, que o sertão era ir obedecendo-se a ele. Eu não queria obediências, obedecências, nem ao meu destino de pobreza, ao casamento como projeto de vida, eu quis ir embora” (p. 60).

Fabiane é desobediente, insurgente e insubmissa. Diz não ao sistema e contradiz os padrões que nos são impostos pelas condições de gênero, raça, classe e também aqui, território. Quiseram colocá-la em caixas que a submetem a repetições, e também quiseram fazer isso comigo, mas não foi possível. Seguimos nos rebelando!

Quis ir embora e foi muitas vezes! Fabiane já esteve em muitos lugares e como é possível que viaje tanto com tantas pessoas à tiracolo? As lutas de pessoas negras nunca se encerram em si. Sempre carregamos conosco as lutas de muitas e muitos, às vezes, toda uma geração.

Caminhando com seus mortos sem nomes

Como já disse anteriormente, a autora de Os meus mortos pedem nome (2025) carrega muitas histórias consigo, mas percebi ao longo da leitura que ela reconhece a responsabilidade e o peso que carrega consigo, mesmo sabendo que não o faz sozinha, abordado o assunto mais especificamente em Das Nossas Formas de Morrer:

O racismo quotidiano, estrutura da sociedade, é um fardo pesado demais para um corpo sozinho dar conta. […] Será que estamos prontos para desenterrar as nossas ossadas, olhá-las de frente e dar nomes ao que se passou? (p. 79-89).

Enquanto lia Os meus mortos pedem nome (2025), me dei conta de que também não conheço a minha história. Por exemplo, a minha avó materna foi uma dessas “meninas pegas para criar”, como a história de Tereza (p. 160) e tantas outras que ela apresenta ao longo do livro. Minha avó nunca me contou uma história de sua infância, ou de dias felizes de férias. Não contou, porque nunca teve dias assim. Esteve trabalhando desde muito jovem, talvez por isso cansou-se e partiu tão cedo.

O trabalho realizado por Fabiane é orgânico e riquíssimo em termos de conteúdo e forma, pois, a fluidez com que suas palavras nos permitem uma imersão completa, mas é necessário ir com calma, pois há aqui um grande esforço mental para encarar tantas verdades de uma só vez.

Eu já conhecia tais verdades, essas ideias me acompanham faz tempo, mas ler é esse processo contínuo de lembrar e esquecer e de se deparar com o óbvio que não foi devidamente compreendido em outras leituras. Assim, fui encarada por algumas verdades, que provocaram estas reflexões, para além da perspectiva intelectual, me atingindo pessoalmente. Por exemplo, já conhecia o conceito de diáspora, mas quando li o que Fabiane traz ainda no Das Nossas Formas de Morrer:

A diáspora do povo afro-brasileiro iniciou-se com o sequestro da população negra em terras africanas, a fuga interna à procura de lugares seguros da pólvora do colonizador. Depois disso, para os quilombos urbanos e áreas de difícil acesso, a fim de dificultar a captura. Após a lei que instituiu o fim o tráfico de escravos, em 1850, o povo negro foi vendido internamente, deslocado de uma região a outra, na maior parte dos casos, do nordesde para o sudeste. Em 1888, saíram das fazendas às cidades em busca de trabalho, do campo para as favelas, das favelas para áreas nas bordas das cidades, de barracos de tábuas ao teto das pontes. (p. 98)

Foi nesse trecho que também me lembrei de Carolina Maria de Jesus, que em seus diários publicados em Quarto de Despejo (2014) compartilhava como “os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê seu povo oprimido” (p. 39) e como o peso que Fabiane relata também é sentido por Carolina, por mim e por outras mulheres escritoras ou não, que tem utilizado a própria voz para falar dos seus próprios mortos física ou socialmente.

Leia também: Canção para ninar menino grande: escrevivências de Conceição Evaristo

Os meus mortos pedem nome e resistem

Como se não bastasse ter que enfrentar o apagamento, o silenciamento e a morte social, o Estado brasileiro ainda tratou de inventar e sustentar mitos que se sustentam até hoje como uma forma de manter os nossos mortos esquecidos, mas eles resistem através de nós. Fabiane relata alguns dos desses mitos que ainda permanecem sendo alimentados no Brasil e como ele continua oprimindo a população negra no item Morte social:

Nos criaram mitos para encobrir os absurdos da história. O primeiro foi o da colonização portuguesa ter sido mais leve e sem preconceitos com relação às demais, pois, afinal, os nossos colonizadores se misturaram e fizeram filhos mestiços. […] Outro mito foi o da democracia racial, cujo principal propulsor, Gilberto Freyre, membro da elite intelectual brasileira, pinta um Brasil onde não há racismo. As raças vivem de forma harmoniosa. […] O mito da cordialidade do povo brasileiro teve a função social de controlar a raiva da população oprimida, inibindo-a ou camuflando-a. […] (p. 125-130)

Pois é, além de termos que nos contentar com o silêncio, ainda esperam de nós, resignação. Como a autora possui muitas referências intelectuais negras, quem a lê, consegue ter informações que levariam anos para que pudéssemos concentrar todas essas informações.

Os meus mortos pedem nomes (2025), escancara uma verdade dolorosa que é não ter direito à ancestralidade, de não conhecer a história da maioria de nossas famílias. As causas desse fato estão escancaradas, mas pensar sobre a dor causada pelo apagamento é pouco refletida, porque passamos a maior parte do tempo resistindo. 

Resistimos a tudo isso e, ao contrário do que esperavam, a raça negra não foi extinta. Não houve política de embranquecimento, extermínio e genocídio que desse conta de apagar os rastros pretos da história nacional, embora sobre ela não seja lançada luz. (p. 151)

E é por isso, que continuamos resistindo, porque ainda há muitas vozes a serem amplificadas. Precisamos falar de muitas pessoas e encontrar formas de nos conectarmos com nossos ancestrais. Há um vazio que precisa ser preenchido e nem todas essas tentativas de embranquecimento serão capazes de nos calar. Seguimos desobedientes, insurgentes e insubmissas. Assim como Fabiane relata, 

Eu estou aqui, reivindicando olhar para a nossa história, para as ossadas e para os meus mortos, os que conheci e os que nunca vi, que sequer sei os nomes. Os meus ressentimentos existem para incomodar quem já virou a página, pois a memória, como diz Ecléa Bosi, tem a função prática de limitar a indeterminação. […] Ah! Eu não quero colocar o meu para dormir. Preciso dele de pé, bem acordado, mesmo que represente uma barreira entre mim e quem possa me ouvir. Meu ressentimento é processo, é resultado, é herança, como diz Allan da Rosa, ele é parte do que me mantém viva.  (p. 224-225)

E a desobediência é um fator essencial aqui, visto que, não é possível assistir à tanto sofrimento, lembrar de tantas dores e não se ressentir. Não somente isso, como também verbalizar e expurgar nossa indignação. Um gesto de se negar a aceitar um destino que não nos cabe mais, porque agora sabemos o que é preciso ser feito para fincar nossos pés na história com direito a nome, sobrenome e um rosto que nos identifique.

O que posso anunciar é que não aceito a morte como destino, nem aquela que me foi apresentada para sobreviver neste mundo branco, masculino e burguês, nem a que me quis fora dele. (p. 229)

Eu também não aceito a morte, Fabiane. Estamos juntas nessa luta e nesse processo de reconstituição de nossas memórias e nossos passados. Creio que ao concluir essa leitura, teremos mais pessoas interessadas em dar aos nossos mortos nomes e tudo mais que eles desejarem.

Sobre a autora

Fabiane Albuquerque é mineira, de Contagem. Nasceu na periferia, morou parte da infância no sertão mineiro, cidade de Corinto. Voltou para as bordas da capital, mesmo bairro, e o encontrou diverso, experimentando mais intensivamente a exclusão social, o abandono e a humilhação de classe. Vivenciou o racismo nas suas diferentes formas e conheceu as artimanhas de dominação do patriarcado, no corpo e na psiquê. Assim como o grande sociólogo Florestan Fernandes, iniciou a aprendizagem sociológica muito cedo, observando o mundo, as injustiças sociais, a falta de poder dos que a rodeavam, e a raiva sem escape, as mortes e a banalidade com que os corpos dos pobres desaparecem, na maioria das vezes, sem deixar rastros.
Descende de gente escravizada, trazida à força para o Brasil, de povos nativos e, infelizmente, de colonizadores que violentaram mulheres. Os seus viveram em fazendas, trabalhando pela subsistência até a sua geração, quando os seus pais se juntaram aos tantos trabalhadores das grandes cidades, em busca de uma vida melhor. Mudou-se inúmeras vezes na infância: periferia, sertão, sertão, periferia, bairro de classe média, Goiás, África do Sul, Congo, de volta ao Brasil, Itália e, atualmente, França. É de lá que escreveu Os meus mortos pedem nomes, ao dar-se conta de que não carrega nenhum objeto de família, não possui jazigos para levar flores aos seus entes queridos, não tem uma casa sequer de herança e, sobretudo, não consegue traçar uma árvore genealógica, pois a ela foram negadas raízes, o direito de saber de onde vem e os nomes dos que a antecederam. Por isso escreveu este livro, com a pretensão de fazer justiça, ou pelo menos, lembrar ao mundo que ela a reivindica. Para si e para os seus.

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