“Jogos Marcados no Corpo de Deus”, romance de Jorge Verlindo é uma espiral para escutar suas personagens, o mundo e a si mesmo

Jogos Marcados no Corpo de Deus é um livro sobre escuta, sobre personagens densos, complexos, que atravessam e são atravessados por outros

Guilherme Arantes tem uma música bem conhecida, simples, mas de grande força, que ficou famosa na voz de Elis Regina: “vivendo e aprendendo a jogar. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”. Porém, nem tudo é tão simples como na canção; afinal, não estamos sozinhos nesse mundo, seja com ou sem Deus: viver é uma ação abstrata e materialmente coletiva em que cada energia movida incide nos corpos dos outros.

Dito de outra forma, podemos pensar a vida como uma espécie de tabuleiro vivo em que, ao mexermos uma peça, estamos diretamente movimentando não apenas o nosso jogo individual, mas também operando transformações no jogo da vida de outras pessoas. Afinal, ninguém joga nesta vida sozinho.

E o mesmo se dá ao contrário: os outros, ao jogarem o jogo de suas vidas, operam transformações em nossas vidas. São nessas espirais de ações, reações e movimentos de translação que Jorge Verlindo parte e opera em seu belíssimo romance Jogos Marcados no Corpo de Deus.

Jogos Marcados no Corpo de Deus é um romance publicado pela editora Cachalote, selo da editora Aboio, em 2025, em que estamos diante de quatro personagens que giram o tabuleiro desta história. Atravessados por suas próprias histórias, de alguma maneira, todos eles passam pelas vidas uns dos outros.

Sem que haja uma influência direta, tirando uma exceção, nenhum deles é parte essencial da vida do outro. Mas são figuras que passam alterando, tocando, vivendo, mudando, piorando, melhorando, traumatizando; enfim, não exatamente sendo o protagonista ou o coadjuvante das vidas uns dos outros, mas alguém que funciona como uma peça de uma engrenagem que move este tabuleiro que Jorge chama de “jogo marcado no corpo de Deus”. Se está difícil compreender, é porque o formato é bastante engenhoso e curioso; vou tentar explicar melhor.

Leia mais: “Faça de tudo para não precisar da coragem”, Fábio Franco volta às memórias de Aracaju para (re)construir as dores de cada um de nós

Jorge Verlindo compõe seu romance através de pequenos textos, capítulos de três ou quatro páginas que, no começo do livro, nos dão a sensação de que estamos diante de uma obra de contos. No entanto, esses pequenos capítulos estão reunidos também em pequenas partes que vão nos dando a ideia de que este romance avança a partir da presença de quatro personagens e que cada um deles será uma espécie de “protagonista” em cada uma dessas partes… mas não exatamente. Na medida em que o romance funciona como uma espiral, teremos a presença de Maria, Matheus, Roberto e Esther.

Maria é uma mulher negra e de família pobre que passou um tempo fora do país e retornou para o Brasil. Ela tem uma boa condição financeira, mas tem como irmão o Luiz, um homem que vive com sua família no subúrbio. Luiz trabalha em uma lanchonete e se sente satisfeito com seu emprego, mas Maria insiste que Luiz deveria querer mais.

Matheus é um rico homem de negócios. Narcisista, ele não consegue olhar para mais nenhum lugar que não seja o próprio umbigo. Ele explora seus funcionários, faz falcatruas para adquirir vantagens, trai a esposa, transa com mulheres e assedia funcionárias.

Roberto é um bom homem em um bom casamento, mas que está se entregando ao álcool. O vício em bebida e as constantes crises internas têm-lhe tirado o melhor de sua vida. Um dia, em seu emprego, uma colega de trabalho lhe pede ajuda emocional, que ele dá de má vontade, pois não gosta dela. Em pouco tempo, ela morre e só ele e mais uma mulher choram sua morte. 

Esther é uma mulher que faz da conquista sexual uma forma de esconder traumas do passado. Ela usa o corpo e a sedução como forma de controle dos homens e escudo para as violências sofridas anteriormente.

Agora imagine que esses quatro personagens são planetas orbitando em volta de um narrador onisciente, mas que funciona numa espécie de escuta psicanalítica, ouvindo reflexões, imaginações, tristezas e filosofias de cada uma dessas figuras e, curiosamente, só assume a primeira pessoa da narrativa quando seus personagens sonham. E essas reflexões são tantas que vão se tornando também parte essencial da narrativa, como se o romance avançasse tanto para seu próprio centro quanto para os momentos que os personagens podem se pensarem.

Autor Jorge Verlindo | Divulgação

De certo modo, Jorge Verlindo constrói em Jogos Marcados no Corpo de Deus, um romance muito aos moldes do que fazia Herman Hesse em obras como O Lobo da Estepe ou Sidarta, romances que são simultaneamente tratados filosóficos, mas com uma intensa carga narrativa. Porém, nesse caso, percebo também um toque da modernidade de José Saramago, na sua tentativa de capturar algo da simultaneidade dos tempos, como em Jangada de Pedra, com o rompimento da Península Ibérica causado pela ação de seis personagens concomitantemente.

Aqui, diferentemente, temos o gesto da espiral. O romance avança em um ponto, através da perspectiva de um personagem, e então gira, para vermos de outra perspectiva; assim, algumas ações se repetem de outro ponto de vista, como por exemplo o atropelamento. Um ponto que me comoveu foi uma reflexão a respeito da relação entre violência, vocabulário e imaginação:

Vamos focar um pouco mais: toda violência (do corpo ou do espírito) brota antes no coração. E para ela se enraizar ali, alguma estupefação se plantou e nos tirou a capacidade de “doer” junto com o outro e, nos limites mais obscuros, permite até que alguém se encha de energia com a destruição da vida alheia. (…)
A falta de palavras, muitas vezes, é um dos principais arrasadores da paz. Não que a tagarelice vá nos ajudar a reconstruir alguém do esmagamento. Mas precisamos de vocabulário para imaginar: é da imaginação que se renasce.

Em outro momento, é Maria que está refletindo sobre questões relativas à sua vida, seu irmão e ao seu passado, até que passa por uma reflexão sobre a figura de Deus:

Não fazia sentido para ela atribuir visões a Deus, mas assim assimilá-las. Deus não poderia ser um resultado da imaginação, mas sim da percepção mais cristalina possível. Deus não vive em escritura alguma, mas nos fenômenos que se manifestam. (…) Como encaixar todas essas partes, montar um rosto multicor, multiforma, fidedigno a Deus? E as partes que se contrapõem furiosamente? Como conectá-las de maneira justa à face de Deus?

Acredito que o mais importante e mais sutil em Jogos Marcados no Corpo de Deus é que, apesar do romance de Jorge Verlindo funcionar nesta espécie de tabuleiro, as suas personagens agem e vivem por contaminação, tal como o autor foi contaminado por diversas obras citadas ao decorrer do livro, seja por Seurat, Goya, Debret. A chave para compreensão das personagens do livro está, talvez, na própria capa do livro, em que um rosto está semicoberto por um violino dividido. Estas personagens funcionam, umas para as outras, como instrumentos musicais de uma grande banda, como se este Deus a quem Maria se pergunta fosse um regente. Ou, quem sabe, o mundo fosse uma grande banda sem regente.

Ainda, talvez, estas personagens possam ser, tal qual o violino, cada uma delas uma das cordas do violino e que, geralmente, são tocadas individualmente por seus instrumentistas, mas que, em seus grupos musicais, formam harmonias complexas em que diversas notas compõem suas canções.

Jogos Marcados no Corpo de Deus é um livro sobre escuta, sobre personagens densos, complexos, que atravessam e são atravessados por outros, por traumas, medos, tal qual somos nós. E não são simples. São medrosos e corajosos. E enfrentam a vida e se enfrentam. Jorge Verlindo, em seu romance de estreia, fez um livro corajoso. Uma das melhores leituras que fiz em 2025.

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