Respire fundo e beba de uma vez esses “Ditirambos para o fim do fim do mundo” (2025), de Mattos Rodrigues, publicado pela Editora Patuá. Recomendo, sobretudo, que antes de degustar essa leitura, lembre-se de oferecer o primeiro gole ao santo ou para um deus, mas não qualquer deus. De preferência, Dionísio, o deus do vinho.
O primeiro gole compartilhado, o resto pode ser bebido em um copo transparente de um bar qualquer, localizado na próxima esquina ou encruzilhada e sentir o bom sabor do vinho que inebria. Para iniciar esta leitura-ritual, Mattos Rodrigues oferece seu primeiro gole a todos os deuses e santos, mesmo sendo “insensatamente cético”, ao menos sobre alcançar o fim do fim do mundo, como opróbrio autor sinaliza:
“Sedutor Príncipe vestido de encanto,
Meu pudoroso coração provinciano
Proclama essa alegria: a ti dirige esse ditirambo
pois o primeiro gole é para o Santo” (p. 19).
Talvez por não encontrar o caminho na atualidade, o autor recorre aos saberes ancestrais, a começar pela capa, que traz a imagem de ouroboros. Símbolo mítico antigo, no qual uma serpente engole a si própria, e representa a eternidade, os ciclos dos quais são compostos a vida e nos convida nesta coletânea de poemas a refletir sobre a renovação dos dias e de tudo que faz parte de quem somos. E já que o fim dos ciclos é algo inevitável, então devemos aguardar um fim do fim do mundo?
Sobre Ditirambos e Dionísio
O “Ditirambos para o fim do fim do mundo, de Mattos Rodrigues, é composto por poemas, divididos em seis partes: Posfácio, Hagiografia, Noite no Ocidente, Cerimônias, As Trombetas e o Timão e O Nome do Pai. Assim, vamos para apreciando os ditirambos e a presença da cultura grega para esta escrita que, na minha interpretação, é uma forma de nos dizer que o fim não pode ser adiado. Entretanto, podemos sempre encontrar nas tumbas da história, algo que nos conduz para novos fins, novas possibilidades de futuro.
Os ditirambos são, portanto, recursos utilizados pelo autor, trazidos diretamente da cultura grega, para evitar a tragédia aguardada: o fim do mundo. Muito natural, que esses cânticos, outrora entoados de forma improvisada ao deus Dionísio em seus cultos, sejam novamente ressuscitados para conseguirmos pensar em um fim do fim do mundo.
Por que os ditirambos? Sugiro que, sendo Dionísio, o deus grego do vinho, das festas, do teatro, dos vícios e dos festejos mundanos, e aquele que foi o último a ser aceito no Olimpo, pois, filho de uma mortal, seria, entre tantas outras, a melhor escolha para evitar a tragédia aguardada. O vinho e a arte podem ser a combinação perfeita para o desenvolvimento de uma estratégia que nos salve do inevitável: o fim de um tempo terrível.
Pensemos ainda mais sobre a presença constante do deus Dionísio no texto do Mattos e como é perceptível o paradoxo constante entre alegria e terror; vida e morte; uma tragicidade conduzida e perpassada por aquele que entrou no mundo duas vezes, conforme a mitologia, e que nasce e renasce para ser salvo. Quem mais poderia nos salvar, senão o ” delirante Dionísio”?
Dos Ditirambos à tragédia
Os efeitos da presença de Dionísio, se acentuam enquanto lemos esses ditirambos. A cada página, nos embriagamos e vamos sentindo os efeitos deste vinho mítico, que amplia nossa percepção para o que está acontecendo e o que precisa ser feito para alcançarmos o fim do fim do mundo, assim como a de Rodrigues.
“Quero beber de todas as taças: na doce mistura dos vinhos
sei que aí te encontro
Quero deitar em todos os leitos: na doce fervura dos leitos
sei que aí te encontro (p. 20)
A comunicação deste fato precisa ser no plural, pois, Mattos Rodrigues é o solista destes ditirambos, entoados para evitar (ou não) uma tragédia, e conta com a colaboração de um coro, composto por nós, pessoas leitoras que compõem esta sociedade, ou seria, cidade. Vejamos…
Segundo Aristóteles, os ditirambos são primordiais para o surgimento das tragédias. A tragédia é “o meio através do qual o poeta pode se dirigir ao conjunto da cidade e representar sob uma forma dramática as principais preocupações da cidade e daqueles que a compõem” (Segal apud Azevedo, 2010, p.22). Por cidade ou polis, nesse contexto, entende-se por organização sociopolítica, constituída por governo, leis e deveu-se. Somos nós em comunhão, regados pelo vinho dionisíaco apenas apreciando a tragédia que se aproxima, como é possível perceber nos versos:
“Eu quero ouvir o último poema
do último poeta
na língua que fala a bala do fuzil
no pescoço do último colono”(p. 54).
A tragédia “questiona a realidade, a problematiza, onde tanto o mundo do mito quanto o da cidade são contestados nos seus valores mais fundamentais. Fazendo parte desse mesmo movimento, a tragédia marca também, segundo Vernant, uma etapa da formação do homem interior, de uma consciência despedaçada, com sentimentos contraditórios que o dividem, que faz questionar os valores heroicos e as representações religiosas antigas: “a tragédia é a cidade que se faz teatro, que se coloca em cena diante do conjunto dos cidadãos […] não como realidades estáveis que se poderia cercar, definir e julgar, mas como problemas, questões sem resposta, enigmas cujo duplo sentido permanece incessantemente a ser decifrado” (Vernant apud Azevedo, 2010, p. 22);
O teatro está presente em cada página deste Ditirambos para o fim do fim do mundo (2025). Enquanto eu fazia a leitura, surgiu uma vontade imensa de subir em um palco e entoar de maneira improvisada cada palavra dita em alto e bom som. Um lamento profundo sobre o fim, que comumente está associado ao trágico. Por este ponto de vista, estes ditirambos estão mais do que justificados.
Mattos nos apresenta seu repertório literário entre os espaços cavados em seus ditirambos e nos instiga a participar desse espetáculo trágico diante de nossos próprios olhos. São 132 páginas, divididas em capítulos com epígrafe que não confortam, pelo contrário, incomodam e provocam, em muitos momentos, a náusea.
“Outros Impérios caídos e pastilhas com Sade
os duques do café e a grã-fina família paulista
suculentos francesinhos assados de ultramar
Encontro o oitavo filho que me confessa na devassa de um suspiro
um exemplar amarelo de goethe nas mãos
suas chagas de amor – não de Sade mas de Werther
azevedianos byronianos grã-fina família paulista”(p. 65).
Nem todos os barris de vinho, multiplicados por Jesus, seriam capazes de nos preparar para esta redenção dionisíaca. Apenas o deus do vinho nos proporciona tamanha euforia e preenchimento.
Os caminhos trágicos e os retornos constantes
Do oriente ao ocidente, percebemos os caminhos feitos pelo sol e pela escrita deste autor que não economiza em sua retórica rebuscada e, ao mesmo tempo, nos concede uma mão que abraça nossos sentidos, enquanto vagueamos entre o infame e o sublime:
“é Noite nas pedras e nos pastos
nas praças e nos parlamentos
é Noite nas artérias e nos ossos
nos ressentimentos
é Noite nos espaços vazios e nas décadas perpétuas
prova dos nove
é Noite: inverdade tropical
Noite entranhada no ventre
da Grande Mãe” (p. 45)
E por falar em infâmia, não pude esquecer da História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges (2012), publicado pela Companhia das Letras aqui no Brasil, que nos traz em seus contos de leitura difícil, um recorte da construção da infâmia, do meu ponto de vista, trágico. Ao relatar sobre “o impostor inverossímil tom castro”, Borges nos informa sobre a importância do tempo, outro fator incontornável, quando falamos sobre o fim:
“É preciso não esquecer também a colaboração todo-poderosa do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem” (p. 26).
Eu diria que o tempo pode mudar tudo, inclusive, nada. É possível o fim do fim do mundo? Adiar estes percalços e nos elevar para todos os deuses de antes, de agora e os que virão?! Somente o espaço-tempo em seus devaneios espiralares poderá nos impressionar com suas incríveis e surpreendentes presenças e ausências com ou sem o vinho dionisíaco.
Não há nada a ser dito que impeça este mundo de ser interrompido. O fim do fim do mundo é possível e é para agora, para os que vieram e que permanecerão nos corpos e nas vielas que nos condicionam ao ir, ao vir e ao cerne da questão.
Por fim, deixo em suspenso o questionamento que me acompanha desde o início desta leitura: o teatro, a tragédia ou a arte podem nos salvar? Para confirmar ou simplesmente se inebriar, conheça os Ditirambos para o fim do fim do mundo, de Mattos Rodrigues.
Referências
AZEVEDO, Cristiane Almeida de. O delirante Dioniso: o divino da vida a partir do trágico. Aisthe, Rio de Janeiro, v. 4, n. 5, 2010. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Aisthe/article/view/11887. Acesso em: [30 de outubro de 2025].
BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.