Canção para ninar menino grande: escrevivências de Conceição Evaristo

“Estou pronta!”, foi o que pensei quando li em uma entrevista dada por Dona Conceição Evaristo, em que ela disse: “A literatura pode tudo”. Isso reafirmou minhas convicções e me deu confiança suficiente para acreditar que posso, enfim, escrever a resenha de Canção para ninar menino grande (2018).

Eu demorei para ler e apreender o sentido. Finalmente tardei ao falar sobre ele, que é um dos livros que mais mexeram comigo, durante minha trajetória como leitora crítica. Não consigo mensurar a proporção do incômodo e do quanto me deixou definitivamente sem palavras, sem chão, sem direção.

Não houve dificuldades na leitura, muito menos em compreender o que este texto queria dizer. A questão é que D. Conceição não usa meias-palavras. Ela coloca as cartas na mesa, e a palavra dela corta a carne, por isso ainda estou cuidando das feridas abertas, que Fio Jasmim, o maquinista, fez questão de deixar em meus registros. 

Conceição Evaristo, autora de Canção para ninar menino grande, na Flin/ Fonte: Reprodução da Internet

Sendo conduzida por Fio Jasmim, em Canção para ninar menino grande

Não estamos falando de uma história, estamos falando de escrevivência, desse conceito que atravessa e permanece. Portanto, é preciso escutar tudo que o texto diz para além das margens. Ele preenche um espaço na minha vida e na vida de quem lê com a devida atenção. Fio Jasmim passou por mim e costurou parte das minhas entranhas.

Enquanto escrevo a resenha, peço licença a você que lê, para compreender que não estou longe da minha escrita. Toda a interpretação desse texto passa por quem eu sou, pela pessoa que fui, pela mulher que me torno e pelos “Fios” que me reconectam com um tempo que foi, que é e sempre será. Me perdoe, não há retorno quando o “si mesmo” é tudo que sou. 

Agora, volto com Fio Jasmim, este que conduz uma história em que ele mesmo não é o protagonista. É, por assim dizer, um catalisador. São as vozes-mulheres que se sobressaem nessa escrevivência. Mulheres que você não conhece, mas que se assemelha a alguém do seu convívio, ou quem sabe, você mesma. Todas nós unidas pelas dores de ser corpo-objeto usado e abusado, dororidade (Piedade, V. 2018).

Enquanto Fio entra e sai das cidades e das mulheres, o trem que nos conduz, não nos desorienta. Não esquecemos das mulheres, nem de como elas seguem suas vidas e como são surpreendidas pelo gozo-desgosto de Fio. Ele, que não está apenas a se satisfazer no presente, mas ainda não abandonou o desejo infante de gozar infinitamente, mesmo que isso signifique machucar, subjugar, mentir, abandonar.

“Se naquele dia, quando tinha apenas oito anos de idade, a professora, Dona Celeste, depois de ter contado a história da Cinderela, impediu que ele encarnasse o papel de príncipe, chamando, para o jogo cênico, um menininho loiro, ele agora poderia ser tudo” (p. 22). 

São tantas mulheres e tantos desejos e tantas vidas em 136 páginas, e isso explica o desconforto, a demora e o desalento. Como pode, D. Conceição? Como pode concentrar tantas vidas em tão poucas páginas? Como pode nos alinhavar por dentro com tão poucas palavras?

“Eram muitas as mulheres. E foi então que Dolores dos Santos entender que matar aquela mulher seria se matar também” (p. 76).

Escrevivências: um bordado no corpo

Essa não é a primeira vez, nem será a única que D. Conceição me captura. Antes em Olhos D’água (2014), em seu conto, Quantos filhos Natalina teve?, me fez repensar o “ser mãe” e minha vida inteira se partiu porque finalmente entendi para além da teoria, o que era ter um filho, o que era ser uma mãe e o quanto tudo isso se trata de escolha e não de destino, nenhum romance, assim como também não há romance em Canção para ninar menino grande.

Canção para ninar menino grande/ Fonte: Reprodução da Internet

Então o que há? Há a dor compartilhada, a falta que não conseguimos nomear, as ausências que constituem quem somos. Fio Jasmim é quem nos conduz e também está sendo conduzido. Quem o orienta é o desejo limitado em uma infância sem amor, sem cuidado, em uma estrutura dura e dormente.

“Ele não entendeu que Dalva Ruiva via nele o príncipe negro, que a professora não permitiu que ele fosse um dia” (p. 87).

Como disse anteriormente, Fio conduz e também está sendo conduzido. Ele é, na verdade, a agulha lançada no tempo sem rumo certo, mas que atinge quem está à frente. A bala perdida que alcança o corpo-alvo sem nenhum pudor. Ele atinge os corpos de mulheres, enquanto se dilacera na própria fúria. 

Entendem o motivo pelo qual demorei tanto? Compreendem minha dor inteira? Não havia como ser antes… apenas agora, que sei que a ‘literatura pode tudo’, inclusive absorver quem eu sou, o que penso, como me escrevo. Eu, corpo-alvo, escrevivida por D. Conceição, em sua doce canção de ninar, de fundo triste, me justificam.

Agora, insisto que você leia. Leia Canção para ninar menino grande (2018). Aliás, não leia, se delicie e se deixe adormecer. Essa escrevivência fará um bordado em você. Irá costurar pedaços de vidas que você passará a conhecer. Você será para sempre marcada pela doce escrita de D. Conceição e garanto: seus pedaços juntados farão de você alguém diferente, docemente diferente. 

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