“Até mesmo as mulheres mais poderosas podem ser meramente reduzidas aos seus corpos”.
Cinderela é um conto de fadas revisitado muitas vezes desde o século XVII, e a sensação de que já se sabe tudo sobre a narrativa é um ponto de partida excelente para a nova leitura de Emilie Blichfeldt. A cineasta norueguesa de 34 anos estreia em grande estilo com um filme que conta a já tão conhecida história sob o olhar de A meia-irmã feia.
Nessa nova perspectiva, a trama revela um horror repugnante onde a Cinderela não é mais uma vítima imaculada, mas uma mulher com desejos, convicta de que sua vida pode mudar se souber usar sua beleza e carisma a seu favor.
Blichfeldt escreveu e dirigiu essa versão gore inspirada pelo texto de 1812 dos irmãos Grimm, em que as irmãs mutilam partes dos próprios pés a fim de calçar o sapatinho que pertence à amada do príncipe. Elvira (Lea Myren) é a meia-irmã que assume o protagonismo nesta abordagem que apresenta Cinderela como antagonista e insere o filme no subgênero do terror corporal.
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Com um corpo que foge aos severos padrões de estética feminina e uma grande necessidade de autoconhecimento, Elvira é uma personagem com quem é fácil se identificar, especialmente diante de uma sociedade que impõe às mulheres modelos impossíveis de alcançar.
Nesse sentido, Blichfeldt afirma que a experiência feminina no mundo é profundamente corporal, pois “até mesmo as mulheres mais poderosas podem ser meramente reduzidas aos seus corpos”. Por isso, a jovem diretora vê o terror corporal como um gênero ideal para contar histórias de mulheres que se submetem a experiências perversas e degradantes em um esforço constante para atender às cruéis exigências sociais.
A proposta de body horror bastante alinhada ao conceito de The Substance, de Coralie Fargeat, conquistou parcerias de renome ao projeto. A Meia-Irmã Feia é produzido por Maria Ekerhovd, da Mer Film, produtora de Sentimental Value (Joachim Trier, 2025), o filme mais aplaudido em Cannes, na história do festival, e coproduzido por Lizette Jonjic, da Zentropa Sweden, que é responsável por Another Round (Thomas Vinterberg), vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2020. Esses nomes de peso garantiram a suntuosidade do longa, apesar da sua premissa de horror que flerta com a comédia.
As locações exuberantes e a fotografia que evoca uma versão soturna dos belíssimos enquadramentos de Razão e Sensibilidade (Ang Lee, 1995) retratam o absurdo de uma corte em que o status é o valor supremo e, para as mulheres, isso é rigorosamente restrito a uma aparência perfeita, uma postura impecável e um bom casamento. Por essa razão, as personagens femininas de Blichfeldt são vítimas das próprias circunstâncias: a cada uma falta algum desses atributos. Elvira, porém, carece dos três e a sua busca por eles é feita de momentos de dor, humilhação e situações repugnantes.
Nas versões tradicionais, apenas Cinderela tem direito a uma fada madrinha. A figura mais próxima que Elvira encontra disso é a de uma instrutora de bons modos que lhe oferece vermes para ingerir e, assim, perder peso para que bem lhe sirva vestido do baile. A crueldade que Elvira enfrenta ao longo de sua jornada vem de outras mulheres, sobretudo da própria mãe, mas todas padecem no mesmo ciclo de opressão: competem pelo olhar masculino que, acreditam, poderá salvá-las de uma vida de miséria.
O terrível ritual de transformação de Elvira inclui o balé. O rigor artístico aparece como mais uma forma de autopunição a evidenciar como o seu sofrimento vem do desejo de aperfeiçoamento constante para conquistar a aprovação de um homem e escapar do olhar reprovador da mãe dominadora: um padrão visível também em Cisne Negro (2010). Como no filme de Aronofsky, a obsessão materna impede que a filha descubra as próprias vontades e belezas internas, ocultando-as com vestidos caros e sufocantes, apavorantes cílios costurados aos olhos e uma enorme peruca.
As referências explícitas de A meia-irmã feia são, portanto, o seu mérito, devido à forma como Emilie Blichfeldt é capaz de transformar o horror de episódios causadores de profunda repulsa em um girly gore de beleza única.
Contudo, a grande entrega desse seu primeiro longa é consolidar um movimento que pode ser chamado de terror corporal feminista, uma leva de filmes dos últimos anos em que cineastas mulheres se apropriam do subgênero enquanto linguagem eficiente para explorar a violência física e simbólica imposta às mulheres pela opressão estética, sexual e social. Blichfeldt se junta, então, a nomes como Coralie Fargeat e Julia Ducournau.
A meia-irmã feia lembra, principalmente, que se uma história já contada centenas de vezes ao longo dos séculos ainda desperta interesse quando reinterpretada em versões cada vez mais sombrias e perturbadoras, é porque seus temas centrais permanecem inquietantes. O terror corporal feminista é um movimento muito interessante, mas o ideal mesmo seria prezar por uma realidade em que a sua temática deixe de ser tão relevante.
Minha nota para A meia-irmã feia no Letterboxd: 4 estrelas.
A meia-irmã feia (2025)
Direção e roteiro: Emilie Blichfeldt
Duração: 1h50.