Priscila é uma poeta, antes de tudo, fascinada por livros. Carrega livros consigo o tempo inteiro. Faz curadoria, edita, tem editora, trabalha com isso em uma empresa, faz mediação em eventos. E escreve. Então escrever para ela não é apenas um processo, é um processo que está atravessado pelo conhecimento minucioso de todos os outros processos. E como não estar sobrecarregada de tudo isso ao escrever? Sinceramente? Não sei.
Talvez por isso eu tenho a intuição que Priscila tem em sua poesia o entendimento universal de que a terra é mesmo redonda e que, no fim das contas, toda ponta se encontra com a outra oposta. Assim, a sua infância parece antiga e seu futuro parece lembrar um passado ancestral. Já sua vó é muito parecida consigo em todas as suas fases da vida. Assim, sua poesia se esvazia de todas as suas tarefas enquanto profissional da arte e ela se torna somente aquela que pode viver no âmago da palavra “ser”.
Desenterrar os ossos não tem nada a ver com ser um cachorro que, após enterrar seus ossos tenta encontrar orgulhoso seu tesouro ali deixado. Ao contrário, é uma tentativa arqueológica escavar para brincar e envelhecer, simultaneamente, com suas reminicências para que elas possam divertir, ensinar e traduzir alguma coisa. Ou seja, como ela própria diz, é um livro que foi sendo tecido por anos, que foi mesmo ganhando tempo. Apesr de ser dividida em três partes – Comer minhocas da terra, Traumas e mantras e Pés de galinha, não acredito que seja uma obra que envelheça. Tal como na ideia de metamorfose, como se pode observar nas plantas, em todas as partes de Desenterrar os ossos, já está lá o âmago do que ela irá se tornar no momento posterior.
Luiz Antonio Ribeiro, editor do Nota, entrevistou a poeta Priscila Branco sobre seu livro, publicado pela Macabéa edições. Confira:
O que você pode falar sobre Desenterrar os ossos?
Desenterrar os ossos, meu segundo livro lançado de poesia, surge a partir de um “surto poético”, de um impulso criativo profundo. É improvável e estranho dizer isso, mas os 45 poemas que compõem a obra foram escritos de um dia para o outro, num período de 24 horas. Foi um processo de escrita da carne e da terra: meu corpo inteiro teve taquicardia, suou frio e tremeu durante sua feitura.
Apesar dessa loucura toda, acredito que um livro se escreve por muitos anos antes de se concretizar, então de certa forma Desenterrar os ossos carrega o peso de múltiplas experiências vividas e aprendidas (no ofício de escrever poesia). Todo poeta possui uma linguagem própria de imagens fantásticas, palavras íntimas e cortes de versos só seus, que vão se repetindo e se acumulando em momentos diários, criando poemas apenas na cabeça, surgindo durante o banho, numa fila de banco ou num almoço banal. Foi assim o processo de escrita desse livro, que apenas resolveu se concretizar de um dia para o outro, como um soluço sem cura, mas que já vinha criando raízes pela casa há muito tempo.
Desenterrar os ossos é um poemário dividido em três capítulos, “Comer minhocas da terra”, “Traumas e mantras” e “Pés de galinha”, representando os momentos cruciais da vida: infância, adultez e velhice. Assim como não acredito numa linearidade temporal de nossas experiências vividas, os poemas das três partes vão se mesclando e se convocando, gerando um movimento circular sem um começo ou fim.
Figuras míticas e lugares do subúrbio, misticismo e religiosidade, neuroses, abusos e relações afetivas são costuradas e desenterradas ao longo da obra, investigando memórias afetivas, familiares e dolorosas. Mais do que poemas que narram um certo tipo de envelhecimento, a voz poética do livro nos convida a caminhar por múltiplos caminhos temporais, entendendo que o tempo pode ser sacudido e espalhado em mil pedacinhos por aí e que a morte pode ser tão forte como um nascimento inesperado.
O livro conta com a edição de Milena Martins Moura e Bianca Monteiro Garcia e projeto gráfico de Caroline Silva. A pintura da capa e todas as ilustrações do miolo são de minha autoria. De vez em quando, brinco de ser artista plástica. Nesse tipo de linguagem artística, costumo pintar pássaros e flores, que são imagens que também se repetem em minha poesia.
Você está voltando para a poesia após quatro anos depois de seu primeiro livro, Açúcar. O que você diria que é a grande diferença entre Açúcar e Desenterrar os ossos?
Apesar de ser meu primeiro livro lançado, em 2021, não comecei a escrever poesia com Açúcar. Escrevo desde criança. Ganhei um concurso na escola aos 8 anos, com um poema sobre minha amiga Jennifer. Tenho vários cadernos, rascunhos e blogs de quase duas décadas. Meu primeiro original de poesia realmente organizado se chamava Conficções. Aos 16 ou 17 anos, bati na porta de uma editora no centro do Rio de Janeiro e deixei lá meus escritos. Alguns meses depois, recebi uma carta me convidando a publicar. Não publiquei. O mesmo aconteceu com o segundo original: Mãos de Babel, que também nunca se tornou livro impresso. Além deles, tenho outros dois engavetados: Pássaros e De óculos escuros.
Conto essa pequena fofoca íntima sobre minha produção literária para explicar que não passei quatro anos em um hiato de escrita. Pelo contrário, escrevi muita coisa, publiquei em antologias, em revistas digitais, tive poemas traduzidos, explorei a escrita de poemas em prosa, crônicas e até alguns contos. A demora em publicar acontece porque colocar um livro no mundo, fazê-lo circular e alcançar leitores exige um nível de comprometimento e energia gigantescos. Preciso fazer isso quando faz sentido na minha vida e na do material que tenho para entregar aos leitores.
Açúcar, assim como Desenterrar os ossos, não foi organizado a partir de uma reunião de poemas que escrevi ao longo dos anos. Os dois livros foram pensados como um todo, contendo algum tipo de conexão entre os capítulos. Além de serem obras que abarcam um conjunto de poemas, possuem capítulos definidos e projeto gráfico isomórfico (acompanhando a imagética dos poemas).
Desenterrar os ossos, diferentemente de Açúcar, conta uma história. Existe uma narratividade explícita entre os poemas, que vão se desenrolando em três tempos circulares. A voz poética tem um trabalho, uma família, habita um lugar, cresceu, envelheceu, morreu (será?). Além disso, acho que amadureci muito minha forma de escrita, estando mais consciente sobre alguns pontos estéticos fundamentais.
Cheia de moscas-varejeiras
e urubus bicando palavras
a escritura é uma fruta
apodrecida
inventando passados
com tinta fresca.
O título sugere um livro que vai escavar algo que foi enterrado. Escavar memórias, lembranças e coisas que ficaram submersas. Como se dá esse exercício de desenterrar coisas que talvez nem devessem terem sido enterradas?
Quando enterramos nossos mortos, precisamos retornar para a exumação após alguns anos. Esse processo nos obriga a revirar novamente o passado e encarar que muita coisa mudou. Porém, algo está ali, resistente, nos avisando que há uma coisa que supera, de alguma forma, a própria morte: os ossos. Estes, que são a parte mais durável de nós mesmos, são trazidos não como um ato meramente exumativo nesse livro, mas como uma experiência de análise, ao propor um processo poético arqueológico e investigativo.
Nesse sentido, a voz poética que conduz a narrativa quer ser uma paleontóloga, retratando com múltiplos olhares os traumas e as memórias. Mesmo quando cremados, os ossos se tornam cinzas e continuam a marcar presença no mundo. É impossível enterrar o passado. É impossível organizar o funeral do futuro. É impossível estar presente na própria morte no momento presente. De qualquer forma, os ossos, esta matéria tão durável que nos sustenta em pé, jamais se enterram completamente, pois o tempo não permite nenhuma linearidade. Falar de uma dor na vida adulta é lembrar da dor do dente de leite que caiu, é se preparar para a vinda de uma dor gritante da demência futura. Os ossos estão sempre sendo desenterrados, não importa a profundidade da cova.
Em termos de estilo, como você descreveria seus procedimentos poéticos em Desenterrar os ossos?
Em açúcar, brinco, em alguns versos, que não tenho um estilo, que gosto de poemas humanos, que mudam de casa e opinião. Foi um livro muito experimental, em que me permiti múltiplas formas de escrever poesia. Em Desenterrar os ossos, porém, sigo um estilo específico, que foi se construindo junto com a própria voz poética que narra os capítulos. Isso talvez tenha sido até mais fácil ao escrever o livro inteiro de supetão, proporcionando essa combinação equilibrada entre os poemas.
Os poemas de Desenterrar os ossos são todos curtos, com enjambements (cortes/quebra de versos) que geram ambiguidades, tentando sempre trazer um tom de assombro para o último verso, que potencialize ou dê um novo significado-surpresa para o título do poema. Cada capítulo é dividido em 15 poemas, conversando com a ideia da ligeireza do tempo. A leitura é rápida, assim como nossa própria vida. Em relação às imagens poéticas, trago o real e o mítico habitando o mesmo lugar, gerando um tom de fantástico para os versos. Existe uma narratividade no livro, apesar de não estarmos falando de uma epopeia ou de uma prosa poética. Escrevo uma poesia agridoce: não é açucarada nem triste, mas um pouquinho humorada, mesmo em momentos difíceis.
Você realiza uma série de atividades dentro do campo literário. Como é ser poeta em meio a tantas tarefas?
Eu já sabia desde criança que meu destino estaria, de uma forma ou de outra, relacionado à literatura. E quando falo isso não estou me referindo apenas ao ato de escrever, mas a tudo que gira em torno do mundo literário, e isso inclui entender que toda ocupação de espaços na cultura é baseada em escolhas políticas.
Por isso, busco formas de me relacionar com a literatura que possam transformar a vida das outras pessoas, entregando, de alguma forma, meu tempo de trabalho a projetos de cunho coletivo. Atualmente, atuo como analista de literatura no Departamento Nacional do Sesc, sendo a responsável pelo Prêmio Sesc de Literatura, pelo Arte da palavra, o maior circuito literário do país, pela Revista Palavra, pela curadoria do Sesc na Flip, entre outros projetos. Sou diretora editorial da Macabéa Edições, editora independente voltada à publicação de mulheres. E faço parte de dois núcleos de pesquisa voltados para a literatura e a edição de mulheres no Brasil (NIELM-UFRJ e Mulheres na Edição – CEFET-MG).
Isso tudo é também sobre meu amor profundo à escrita e à poesia, pois escrever não acontece num processo isolado do mundo. Em meio a tantas tarefas, sigo escrevendo. Nem sempre no papel, mas todos os dias surgem imagens inesperadas na minha cabeça, narrativas de romances, versos desconexos. Enquanto a vida vai acontecendo, vou arranjando espaços para o prazer do texto se concretizar. De vez em quando, isso acaba virando um livro, como agora mesmo com Desenterrar os ossos.
Como é poder fazer parte do corpo editorial da editora que publica seu livro? Isso dá mais autonomia criativa ou o engajamento em todos os processos de criação são percalços a superar?
Isso com certeza me deu uma autonomia muito maior na condução da edição de Desenterrar os ossos. Como somos três poetas e editoras à frente da Macabéa Edições, estamos o tempo inteiro conversando e trocando sobre o projeto gráfico, a estrutura dos poemas, montagem dos capítulos, títulos, ilustrações a serem inseridas, tipo de papel etc.
Acredito que teria muita dificuldade, após essa experiência de anos como editora, em largar o original na mão de uma casa editorial e não participar ativamente na construção do livro. Desenterrar os ossos também carrega muito do meu olhar de edição. Por ser também autora, em alguns momentos bato o pé demais, e isso pode atrapalhar o pensamento editorial externo. Mas tudo foi feito com muita conversa e negociação com minhas editoras preferidas, Milena e Bianca, que são excelentes poetas.
Diga 3 motivos para nossos leitores lerem Desenterrar os ossos?
Serei breve, prometo:
Desenterrar os ossos é um livro que conversa com experiências vividas por todas as pessoas: medos, neuroses, perdas, relações familiares, envelhecimento. Além disso, todos vivenciamos esses ciclos de enterrar e desenterrar memórias ao longo das fases da vida. Acredito que o leitor se identificará, ao mesmo tempo que se estranhará, com diversos poemas da obra. A literatura permite esse encontro entre solidões e intimidades desconhecidas.
O livro traz um projeto gráfico belíssimo, o que faz com que ele seja um objeto artístico também. Junto com os poemas, você encontra pinturas e ilustrações minhas.
Ler mulheres publicadas por editoras independentes no Brasil é um ato político. Ao ler Desenterrar os ossos, você contribui para a circulação de a pluralidade editorial e literária em nosso país.
Quem é Priscila Branco?
Priscila Branco é poeta e escritora, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Pesquisadora da poesia de mulheres, é editora da revista toró, diretora editorial e curadora da Macabéa Edições e colunista da revista cassandra. Atua como analista de literatura no Sesc Nacional. Seus poemas já foram publicados em diversas revistas brasileiras, traduzidos para o espanhol (nas revistas mexicanas Granuja e peruana Kametsa) e para o tcheco (na revista Tvar). É uma das autoras da antologia Este imenso mar, do Instituto Camões de Portugal. Integra o Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura (NIELM-UFRJ) e o grupo de pesquisa Mulheres na Edição (CEFET-MG).
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