“Música para Ninar Dinossauros”: escrita por Mário Bortolotto, espetáculo é o check-up de uma geração em crise

Música para ninar dinossauros foi escrita quando Mário Bortolotto ainda estava convalescendo após levar três tiros em um assalto no Bar Parlapatões e conseguir escapar milagrosamente vivo e sem sequelas aparentes. O espetáculo conta a história de três amigos beirando os sessenta anos que, incapazes de ter relações convencionais com mulheres, sempre chamam garotas de programa para lhes fazer companhia.

A peça alterna a cena atual com os três personagens em cenas de 15 anos antes. A peça é uma espécie de check-up dessa geração de homens extremamente solitários e que não conseguem mais estabelecer relações de afeto e de intimidade. São os sujeitos que nasceram nos anos 60, com todas as explosões de rebeldia e busca de liberdade e que agora, quase 60 anos depois, encontram-se numa encruzilhada entre o “que se pode fazer (a partir de conquistas)” e “o que se consegue fazer (a partir de conquistas)”. É o check-up de uma geração que está no contrapé de uma vida aparentemente libertária.

A dramaturgia de Música para Ninar Dinossauros, de Mário Bortolotto, se constrói de forma crua e não linear para dissecar a crise existencial de uma geração. A estrutura que alterna o presente dos personagens, homens beirando os sessenta anos, com cenas de quinze anos antes, funciona como um dispositivo de “check-up” dramático, expondo a estagnação e a solidão de quem, apesar de ter vivido a explosão libertária dos anos 60, se tornou incapaz de estabelecer relações afetivas genuínas.

Bortolotto evita soluções fáceis e palatáveis, apresentando personagens que, por vezes, soam infantis em sua dependência de garotas de programa para obter um mínimo de afeto, mas cuja fragilidade ecoa a herança tóxica da Geração Baby Boomers, um modelo de masculinidade baseado no estoicismo, no dever e na repressão emocional. As personagens femininas, embora aparentemente secundárias, são fundamentais como âncoras que revelam a profunda inabilidade desses homens para lidar com suas próprias emoções, tornando a peça um comentário contundente sobre a “analfabetização emocional” que define e condena seus protagonistas ao isolamento.

Crédito: Thamires Meraki

Com um elenco numeroso e coeso, a montagem de Música para Ninar Dinossauros encontra sua força motriz na entrega inquestionável e na maturidade artística de seus intérpretes, que demonstram notável técnica e coragem para navegar pela complexidade crua da dramaturgia de Bortolotto e corporificar personagens profundamente frágeis. Os atores, perfeitamente alinhados ao projeto, conseguem traduzir com precisão a estagnação e a crise existencial dos protagonistas, equilibrando a infantilidade e a vulnerabilidade desses homens sem recorrer a caricaturas, com destaque para a plasticidade cênica de Nelson Peres. O conjunto do elenco, ao se expor a um material que questiona valores tão centrais da masculinidade, não apenas sustenta a narrativa não linear, mas também confere a autenticidade necessária para que o “check-up” emocional da geração retratada ressoe com potência e verdade perante o público.

Embora a narrativa se centre na crise masculina, o elenco feminino — composto por Ana Rita Abdalla, Biah Ramos, Carolina Cardinale, Débora Stter, Giovanna Federzoni e Thamires Meraki — desempenha uma função estrutural vital na peça, atuando como as âncoras emocionais que revelam as profundas fraturas dos protagonistas. Longe de meras coadjuvantes, essas atrizes trazem complexidade às personagens que ocupam o papel de garotas de programa, transformando momentos de suposta superficialidade em poderosas intervenções dramáticas.

Com precisão e sensibilidade, suas atuações funcionam como espelhos que refletem a incapacidade afetiva dos homens, expondo tanto a vulnerabilidade disfarçada de cinismo quanto a solidão que permeia ambos os lados dessas transações. A força do elenco feminino reside justamente em sua capacidade de humanizar essas figuras, criando pontes de compreensão com o público e elevando o espetáculo de um mero diagnóstico geracional para um retrato mais complexo das dinâmicas de afeto e solidão.

Crédito: Thamires Meraki

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A direção de Mário Bortolotto, que também assina a iluminação e a trilha sonora, demonstra um controle absoluto da linguagem cênica ao serviço da dramaturgia, criando uma encenação onde os elementos técnicos atuam em perfeita sintonia para amplificar o tema da peça. A iluminação minimalista e a trilha sonora nostálgica não são meros acompanhamentos, mas ferramentas narrativas que sublinham a solidão e o peso do passado, enquanto as transições de cena, com precisão cinematográfica, espelham a própria estrutura não linear do texto, alternando com fluidez entre as temporalidades para evidenciar a estagnação emocional dos personagens. Esta integração total entre texto, encenação e elementos técnicos revela uma concepção de espetáculo coesa, onde cada escolha é deliberada e contribui para o “check-up” geracional, transformando a encenação em um organismo vivo que respira e pulsa na mesma frequência da crise existencial que busca retratar.


Em suma, Música para Ninar Dinossauros consolida-se como uma das experiências teatrais mais essenciais da cena contemporânea, não apenas pelo diagnóstico impiedoso que realiza sobre a solidão masculina de uma geração, mas pela maestria com que integra dramaturgia, interpretação e encenação num todo orgânico e contundente.

A peça transcende o mero retrato geracional para se tornar um espelho desconfortável sobre a herança tóxica de um modelo de masculinidade em frangalhos, onde a precisão cinematográfica da direção, a entrega corajosa do elenco e a crueza do texto convergem para criar um teatro que é tanto reflexão urgente quanto experiência estética potente. Bortolotto, ao transformar seu trauma pessoal em arte, nos oferece um raro e necessário lamento sobre os dinossauros emocionais que habitam nosso tempo, e sobre o preço que se paga por uma vida de afetos não vividos.

Ficha técnica:
Texto e Direção: Mário Bortolotto
Iluminação e Trilha Sonora: Mário Bortolotto
Elenco: Ana Rita Abdalla, Biah Ramos, Carolina Cardinale, Carcarah, Débora Stter, Eldo Mendes, Giovanna Federzoni, João Bourbonnais, Mário Bortolotto, Nelson Peres, Pedro Pedreschi, Thamires Meraki.
Operação Técnica: Davi Puga e Bela Bortolotto
Ilustração e Programação Visual: Carcarah
Fotografia: Thamires Meraki
Produção: Cemitério de Automóveis e Bela Bortolotto

Serviço:
Teatro Cemitério de Automóveis
Rua Francisca Miquelina, 155 – Bela Vista, São Paulo/SP
Temporada: 03 a 26 de outubro de 2025
Horários: Sextas e sábados às 21h; domingos às 20h
Ingressos: R$ 50 (inteira) / R$ 25 (meia)
Duração: 90 minutos
Classificação Indicativa: 16 anos
Capacidade: 50 lugares
Ingressos: Antecipado: Sympla Cemitério de Automóveis
& na bilheteria do teatro, aberta sempre 1h antes do espetáculo
Acessibilidade: O espaço possui acessibilidade para cadeirantes

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