Nenhuma crítica é imparcial, mas aviso que essa será menos ainda que as demais. Amuleto trata de um município que moro já há 20 anos, Duque de Caxias, e não nego ter um prazer enorme de ver cenários que fazem parte da minha rotina serem exibidos na tela do Odeon. Outro ponto é que conheço pessoalmente os diretores, Igor Barradas e Heraldo HB, e participei de oficinas no cineclube Mate com Angu e Barradas foi um dos convidados das lives sobre cinema que realizo mensalmente aqui no Nota.
Mesmo com essa parcialidade toda, escrevo as próximas e elogiosas palavras tranquilo com a minha consciência de que não estou exaltando Amuleto somente por ver lugares que conheço ou pelo carinho que tenho pelos seus realizadores, mas sim por ser tratar de um belo trabalho de resgate da memória do cinema brasileiro, e também de um olhar carinhoso para uma Duque de Caxias real, com todos seus problemas e qualidades.
A espinha dorsal da obra é O Amuleto de Ogum, clássico dirigido por Nelson Pereira dos Santos filmado em Duque de Caxias, mais especificamente na figura de Chico Santos, cineasta caxiense que roteirizou e atuou no longa, mas também trata de outras figuras integrais à obra, como o montador Severino Dadá, uma das presenças mais fortes do filme.
Amuleto é um passeio entre relatos pessoais de participantes do filme e outras pessoas próximas à obra, cujos depoimentos são sempre indicativos de uma história maior. A história de Caxias se confunde com a história de O Amuleto de Ogum que é parte de uma história maior do cinema brasileiro e, por consequência, do Brasil. Os entrevistados e a narrativa nunca deixam de pontuar os aspectos políticos que moldaram a trajetória dos cenários retratados, como o depoimento de Luiz Carlos Lacerda acerca de um personagem homossexual presente na obra, ou diversos apontamentos sobre o elitismo e a fragilidade do cinema brasileiro, que perdura até hoje.
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É de Dadá uma frase que simboliza o classismo presente no audiovisual. Dadá fala do preconceito que sofreu pelo seu profissionalismo não ser construído nos espaços tradicionais do audiovisual, e lembra que as pessoas diziam que Severino era nome de quem construía casa, pedreiro. “Agora tem um Severino construtor de filmes!”, brinca.
Parte da força de Amuleto é ser um retrato dessa classe trabalhadora do audiovisual, aquela cujos nomes até estão nos créditos finais, mas que poucos ficam na sala para ver. Um aspecto do resgate histórico empreendido pelos seus realizadores é mostrar a Cinelândia na década de 70, um ponto de encontro não somente para cineastas renomados, mas também para os técnicos que nem sempre tinham trabalho, e muitas vezes dependiam da solidariedade de colegas para sobreviver.
Dizer que um filme é “importante” é um clichê que me irrita, contudo, Amuleto é sim, importante, resgatando e registrando memórias importantes do cinema brasileiro, e mostrando o quanto o passado ainda pode proporcionar para o futuro. Em um dos momentos finais do filme, Barradas e HB se colocam como fãs, encantados com os materiais de arquivo do Chico Santos, incluindo roteiros não filmados. O fim do longa é mais vírgula que ponto final, e não se fecha em si mesmo, ele se abre como um chamado para olhar de novo para o cinema brasileiro, mesmo diante de toda sua imperfeição.