Na adolescência, a maioria dos livros na minha estante eram histórias distópicas — de Orwell a Atwood. Não sei exatamente o que me atraía naquelas narrativas, mas tenho certeza de que jamais imaginei vivenciar cenários tão pessimistas. Se a utopia busca a “[…] estabilidade social e política, ou a estabilidade institucional […]”, a distopia é o tópos (lugar, em grego) dilacerado. Para a filósofa Marilena Chauí, “[…] a distopia constrói a figura de uma sociedade perversa.” Nesse sentido, talvez não seja exagero afirmar que, sob a condução política de Donald Trump, os Estados Unidos experimentam lampejos de terror e caos distópico. O suposto país da liberdade assiste, desnorteado, às próprias bases ruírem. My citys’s in ruins, cantaria Bruce Springsteen
O jornalista Jamil Chade, no livro Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana (editora Nos), utiliza a metáfora da distopia para descrever o atual cenário político estadunidense, especialmente após a segunda vitória do presidente Donald Trump. O livro é composto de crônicas jornalísticas. O autor presenciou, durante quase um ano, a erosão da chamada maior democracia ocidental. Chade percorre regiões fronteiriças, grandes cidades e também áreas esquecidas pelo “sonho americano”. Ele relata as situações de abrigos de deportados, comunidades latinas sob vigilância, zonas de pobreza extrema e a naturalização de discursos de ódio no cotidiano. O título do livro, inclusive, é uma frase dirigida ao seu filho por um colega de escola.
“Um país que, pela primeira vez em oitenta anos, se deparava com um questionamento de sua hegemonia, enquanto se dava conta de que a pobreza em suas periferias persiste, corrói e estabelece um clima de desilusão.”
Ainda sobre gêneros distópicos, um dos livros que mais foi lido nos clubes de leitura, após a vitória de Trump, foi It can’t happen here. Diante do avanço nazifascista na Europa, o autor Sinclair Lewis imaginou o fascismo desembarcando nos Estados Unidos. Um dos personagens da história descarta por completo a possibilidade de um fenômeno autoritário em terras norte-americanas, afinal, eles são de um país de homens livres. Em 2025, porém, não é possível proferir tal afirmativa com tanta convicção. O desgaste da democracia não está completamente descartado.
Se o desgaste da democracia estadunidense está em curso, Chade foi testemunhá-la com os próprios olhos. Participou dos comícios e, no dia do resultado das eleições, esteve com os apoiadores incondicionais de Trump em um bar em Nova York. Para quem trabalha com jornalismo e fatos, as situações foram, no mínimo, insalubres. Ao saberem de que havia um jornalista brasileiro no meio deles, perguntaram ao Chade como é ter um comunista no poder. Claro, ele tentou explicar, em vão, que não existia comunismo no Brasil. Em um outro momento, já com a vitória anunciada de Trump, um democrata afro-americano anuncia que Kamala Harris não falaria com seus eleitores naquela noite. O seguidor de Trump, então, grita para a TV: “você parece um escravo”.
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A distopia, aos poucos, toma forma após a vitória do republicano, sobretudo com o tema da imigração. A fronteira entre o México e o território estadunidense é um limbo para muitas pessoas. Os Estados Unidos têm histórico de deportar seus imigrantes,ação praticada até mesmo no governo dos Democratas, contudo, na nova era do Trump, o horror está evidente. Para entender de perto essa situação, Chade esteve presente em uma reunião de imigrantes e outros estadunidenses, no subsolo de uma biblioteca. Ironicamente, o encontro acontecia atrás de uma estante com livros de “não ficção”, parecia que aquela reunião era de uma obra imaginária, talvez distópica, semelhante às histórias lidas na minha adolescência, mas era, infelizmente, parte da realidade.
“Nos rostos de cada um naquela sala, a imagem era de tensão. Ali estavam cidadãos comuns, ativistas, professores, afro-americanos, casais gays, imigrantes e estudantes.”
Até mesmo rezar tornou-se uma prática perigosa para imigrantes nos Estados Unidos. Agentes de imigração passaram a ter autorização para entrar em templos religiosos e deter os considerados “indesejáveis”. Foi o que aconteceu com o hodurenho Wilson Velásquez. Assim que cruzou a fronteira com a família, solicitou asilo e já tinha uma data marcada para comparecer aos tribunais. Mesmo cumprindo todas as exigências burocráticas, o que incluiu uma tornozeleira eletrônica, isso não impediu que fosse detido. Com discurso religioso, o governo Trump e seu vice, declaradamente católico, apelam à Bíblia. No entanto, essa prática de perseguição contrasta diretamente com diversas vertentes do cristianismo — do catolicismo ao protestantismo — que orientam a acolher o estrangeiro.
O auge da distopia estadunidense foi a invasão ao Capitólio, no dia 06 de janeiro de 2021. Chade teve a oportunidade de entrevistar um dos invasores, o qual ficou conhecido como “Viking do Capitólio”. Com a retomada de Trump à Casa Branca, Jacob Chansley – o viking— foi perdoado pelo presidente. Consequentemente, sua sentença de quarenta e um meses de prisão foi anulada. Chade tinha a intenção de saber, a partir da perspectiva dos trumpistas, a justificativa das ações daquele fatídico 06 de janeiro, porém seria uma tarefa árdua, especialmente porque o viking não utiliza da sua racionalidade. O que aconteceu em janeiro de 2021, na verdade, era mais sobre espiritualidade e menos sobre política. O próprio Chade percebeu que aquela não seria uma entrevista como qualquer outra:
“Conforme nossa conversa se desenrolava, descobri que, naquela mesa, estava diante de mim um dos resultados mais bem acabados da mistura de desinformação, impunidade e desprezo pelos fatos. Um personagem que não tratava mais a política como uma escolha racional mas como uma questão de fé e uma missão baseada em teorias conspiratórias, na Bíblia e na certeza de que seu movimento é irreversível.”
O Viking do Capitólio poderia ser um personagem de um romance distópico: encarna a fusão entre espetáculo, violência e crença irracional. Representa não apenas um indivíduo, mas a face grotesca de uma sociedade desestabilizada. Ao invadir o Capitólio, rompe com a instituição democrática e passa a fazer parte de um delírio coletivo. Cultua seu líder sem questioná-lo, acredita em fatos infundados, mesmo contra todas as evidências. O vácuo é preenchido por uma fé cega.
Jamil Chade nos mostra em Tomara que você seja deportado que a distopia não precisa de futuros longínquos, nem de máquinas de vigilância dignas de ficção científica: ela pode emergir da banalidade cotidiana. Os Estados Unidos encontram-se em terreno instável e talvez o maior alerta do livro de Chade seja este: nenhuma sociedade, por mais sólida que se considere, está imune ao colapso distópico quando abandona a razão e normaliza a perversidade. Após quase um ano nos Estados Unidos, Chade retorna para a Europa. Na mudança, o jornalista empacotou assombros.
Bibliografia consultada:
CHAUÍ, Marilena de Souza. Breve consideração sobre a utopia e a distopia. Filosofia e cultura: Festschrift em homenagem a Scarlett Marton. São Paulo: Barcarolla, 2011. Acesso em: 23 set. 2025.
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