Muito antes de Cem Anos de Solidão (1967) consagrar Gabriel García Márquez, a literatura latino-americana já havia recebido contribuições de escritoras cujas narrativas anteciparam um estilo hoje identificado com o realismo mágico — entre elas, María Luisa Bombal, no Chile, e Silvina Ocampo, na Argentina. Em seus trabalhos, ambas cruzaram fronteiras da realidade, tratando o insólito a partir da intimidade, uma abordagem que a crítica viria a reconhecer posteriormente como marca essencial do realismo mágico.
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María Luisa Bombal: a “gramática da penumbra”
María Luisa Bombal, escritora chilena nascida em Viña del Mar em 1910 e falecida em Santiago em 1980, publicou no contexto das primeiras décadas do século XX obras que renovaram a literatura chilena, rompendo com o naturalismo dominante ao tratar de temas eróticos, surrealistas e feministas.
Em suas novelas curtas, como La última niebla (1934) e La amortajada (1938), elementos como névoa, silêncio e memória assumem papel estrutural, já que se tratavam de “personagens” que dissolvem os limites entre o real e o extraordinário. Essa narrativa, centrada no mundo interior das personagens femininas, constrói uma “gramática da penumbra”, segundo recentes leituras literárias. A abordagem onírica de Bombal serviu de referência a escritores posteriores: Juan Rulfo teria reconhecido a influência de La amortajada ao criar Pedro Páramo (1955), e estudiosos destacam seu peso na consolidação do realismo mágico.
Sua escrita se distingue pela concisão que engendra atmosferas densas. Elementos fantásticos presentes no cotidiano anteciparam soluções narrativas que se tornariam centrais no realismo mágico como gênero literário. A revalorização de sua obra nas últimas décadas reforça essa contribuição pioneira, sobretudo a partir de perspectivas de gênero e história literária.
Silvina Ocampo: realismo fantástico a partir da intimidade
Na Argentina, Silvina Ocampo, nascida em 1903 e falecida em 1993, circulou no ambiente cultural de Buenos Aires ao redor da revista Sur, fundada por sua irmã Victoria Ocampo em 1931. A revista reuniu figuras como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Alfonso Reyes, e foi núcleo de difusão de inovação literária no país.
Silvina transitou entre pintura e escrita, e publicou seu primeiro livro de contos, Viaje olvidado (1937), pela Sur. Na obra, descreveu personagens que desafiam normas, como crianças perversas, institutrizes e servitudes, usando uma linguagem evocativa em que o inverossímil se impõe como parte do cotidiano. Em Autobiografía de Irene (1948), também publicada pela Sur, persistentemente aparecem temas como magia, duplicidade, crueldade e a tensão entre real e onírico, construídos por uma prosa elaborada e centrada no transformismo fantástico.
Confira alguns livros de Ocampo publicados no Brasil:
As Convidadas
Uma das escritoras fundamentais do século XX, Silvina Ocampo vem sendo revalorizada com entusiasmo nos últimos anos. Seu nome é cada vez mais citado como referência por uma nova geração de autoras que tem alcançado protagonismo nas letras latino-americanas, e sua obra começa a sair da sombra de figuras como Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, que faziam parte de seu grupo literário em Buenos Aires.
As convidadas , lançado originalmente em 1961, é considerado emblemático em sua maturidade estilística. As obsessões da escritora, como as crianças que agem de maneira enigmática e muitas vezes parecem mimetizar os adultos, retornam já no primeiro conto, “Assim eram seus rostos”, até atingirem uma apoteose no texto que dá título ao livro. Nele, um garoto enfermo é deixado a sós com a empregada em seu aniversário de seis anos, quando recebe como convidadas meninas estranhíssimas, vindas sabe-se lá de onde. O desfecho é uma síntese do humor absurdo presente na prosa de Silvina, sempre atravessada por elementos insólitos e perturbadores.
A fúria
Publicado em 1959, A fúria é considerado “o mais ocampiano” dos livros de Silvina, obra em que a autora encontra sua voz única e inaugura seu universo alucinado. “Nos seus contos há algo que não consigo compreender: um estranho amor por certa crueldade inocente e oblíqua”, escreveu o amigo Jorge Luis Borges. Saídas do que Roberto Bolaño chamou de “uma limpa cozinha literária”, suas histórias misturam elegância e excesso, distanciamento e intensidade, calma e horror. Há a influência macabra que a antiga dona de uma casa exerce na nova inquilina (“A casa de açúcar”, o conto favorito de Julio Cortázar); adivinhos e premonições (“A sibila” e “Magush”); amores loucos (“A paciente e o médico”); a festa de aniversário de uma jovem paralítica (“As fotografias”); e uma profusão de crianças malignas, como a que incendeia cruelmente uma amiga no conto que dá título ao livro. Revalorizada com entusiasmo nos últimos anos, a literatura de Silvina Ocampo é singular, complexa, envolvente e nos convida, como poucas, à fantasia e à imaginação.
A crítica literária reconhece a singularidade presente em seu estilo a partir de uma representação íntima que insinua universos paralelos, mundos fragmentados e cenas do inconsciente. As narrativas de Ocampo apresentam personagens cujos segredos formam sua identidade, e cuja voz literária escancara o não dito, a ambiguidade, o oculto.