“A literatura não precisa salvar, mas pode iluminar o abismo”: entrevista com o autor Maurício Mendes

Em “O Homem não foi feito para ser feliz”, publicado pela editora Mondru, Maurício Mendes descreve Germano, protagonista e narrador, como um médico negro, “mais puxado para o pardo”, nas palavras do próprio personagem, que começou a carreira no interior do Ceará no final dos anos 1990, onde logo de cara teve que lidar com a politicagem e a precariedade da saúde pública. 

Com o passar dos anos, deixou um pouco de lado o idealismo, ascendeu socialmente como radiologista em uma clínica particular, e vivia uma vida agridoce, mais acre do que doce, revendo e questionando suas escolhas de vida, seus fracassos amorosos e a busca por prostitutas de “perfil universitário, classe média”. Camille, uma dessas mulheres, entra para desafiar esse narrador cheio de certezas que caem como um castelo de cartas. 

Há entre os dois um jogo de poder espelhado em referências literárias no qual o grande nome é Philip Roth. O autor que se debruçou sobre a psique masculina e criou personagens solitários, introspectivos e atolados em existencialismo, tal qual nosso protagonista e narrador. “O professor do desejo”, inclusive, indica a insegurança de Germano, principalmente com relação às mulheres.

Um homem machista que escondia seus medos, traumas e inseguranças atrás de um autoproclamado hedonismo. Um homem negro que lutava por espaço desde o início da narrativa, tendo que reafirmar sua posição de médico, um médico que ainda carregava certos ideais dentro de um sistema entregue a conglomerados de saúde focados no lucro.

Um narrador-personagem complexo, cheio de nuances, falhas, e por isso real, capaz de despertar repulsa e identificação. O refutamos, mas também concordamos com ele, imagino que alguns leitores mais, outros menos, mas aí é que está a grande aventura da ficção. 

Leia a resenha completa de “O Homem não foi feito para ser feliz” aqui!

Eu tive a oportunidade de entrevistar o autor Maurício Mendes e o resultado você pode conferir abaixo:

Bianca Fonseca – O que as pessoas podem esperar ao longo da leitura de “O Homem não foi feito para ser feliz”?

Maurício Mendes – Acredito que os leitores podem esperar uma jornada literária marcada pela inquietação, pela ironia e a recusa de respostas fáceis. Não planejei o romance para oferecer conforto, nem acho que esse seja o papel da literatura. A intenção é provocar, desestabilizar e convidar à reflexão. Germano, o protagonista, é um médico que ascende socialmente, mas carrega uma angústia existencial que o impede de se integrar ao mundo.

Ao longo da leitura, o leitor é confrontado com temas como racismo estrutural, misoginia, solidão, mercantilização da saúde e a falência das relações humanas.

Não há espaço para redenção, nem catarse, mas perplexidade. E, talvez, seja justamente nesse ponto que reside sua força: não em querer agradar, mas em querer dizer, mesmo quando o que se diz incomoda.

Bianca – Germano é o protagonista e o narrador. Por que a escolha da narração em primeira pessoa? E como foi escrever em primeira pessoa?

Maurício – Eu queria envolver o leitor na história desde o início; por isso, a escolha pela primeira pessoa foi quase inevitável. Germano não poderia ser observado de fora; ele precisava ser ouvido de dentro. Essa perspectiva me permitiu explorar suas contradições, seus silêncios e suas racionalizações sem o filtro da objetividade.  

Escrever dessa forma foi um exercício de escavação. Precisei me despir de julgamentos e me colocar na pele de alguém que, embora distante de mim em muitos aspectos, carrega angústias que são universais. 

Germano não é confiável, e isso faz parte do jogo.  A narração não busca esclarecer, mas confundir, tensionar e expor o que há de mais humano.

Bianca – O racismo é um dos pontos centrais no romance, sendo Germano um homem negro que ascendeu socialmente e precisa se reafirmar constantemente. O quanto você acha que o racismo cotidiano impactou o psicológico do personagem?

Maurício – O impacto do racismo cotidiano sobre Germano é profundo, silencioso e corrosivo. Não se trata apenas de episódios pontuais, mas de uma tensão constante que atravessa sua subjetividade. A ascensão social não o protege – pelo contrário, ela intensifica a necessidade de reafirmação e o coloca em um lugar ambíguo, onde é visto como exceção, mas nunca como pertencente.

Germano internaliza essa violência. Ele tenta racionalizar, esquivar-se, adaptar-se, mas o corpo e a linguagem denunciam o desgaste. O racismo não aparece como denúncia explícita, mas como fissura: está nos gestos, nas pausas, nas escolhas que ele faz para ser aceito.

O resultado é um sujeito em permanente estado de alerta, que vive entre o desejo de pertencimento e a consciência de que nunca será plenamente acolhido. Essa fratura é o que move sua angústia e talvez o que o impede de ser feliz.

Bianca – Germano é fruto de uma sociedade machista e reproduz falas e comportamentos misóginos. Como foi, como homem também inserido nessa sociedade, escrever tal personagem?

Maurício – Escrever Germano foi um exercício de desconforto necessário. Como homem, estou atravessado por estruturas que me formaram e que, muitas vezes, operam de forma silenciosa. Ao criar um personagem que reproduz falas e comportamentos misóginos, precisei encarar não apenas o que há de condenável nele, mas também o que há de familiar, e isso demanda uma honestidade profunda.

Germano não é um vilão nem um herói. Ele é fruto de uma sociedade que normaliza a violência simbólica contra mulheres, e sua misoginia não é caricata; ela é cotidiana, disfarçada e muitas vezes racionalizada. Ao escrever essas camadas, tentei não cair na tentação de redimir nem de punir, mas de expor.

A literatura, para mim, não é lugar de correção moral, mas de revelação. E revelar Germano foi também revelar fissuras que atravessam muitos de nós, inclusive eu.

Por mais desconstruído que um homem heterossexual possa se tornar, sempre haverá questões a serem ajustadas.

Bianca – Germano é um personagem complexo e gera desde a identificação até a repulsa. Qual era sua expectativa quanto à recepção do personagem perante os leitores?

Maurício – Minha expectativa nunca foi a de gerar empatia plena. Germano não foi criado para ser admirado, tampouco para ser odiado. Ele existe em um território ambíguo, onde identificação e repulsa se misturam, e é justamente aí que reside sua complexidade.

Eu sabia que alguns leitores poderiam se reconhecer em suas angústias, enquanto outros se incomodariam com suas contradições e falhas éticas. Para mim, isso é um sinal de que o personagem está vivo.

A literatura que me interessa não apresenta personagens exemplares, mas sujeitos em conflito. Germano é um desses: alguém que incomoda porque revela o que há de incômodo em nós. Se ele provoca rejeição, talvez seja porque toque em feridas que preferimos manter encobertas.

Bianca – Qual o papel da sua experiência como médico no desenvolvimento do personagem, também médico?

Maurício – Minha experiência como médico foi essencial para dar corpo à rotina de Germano, mas não no sentido técnico. O que me interessava era a tensão entre o que ele presencia diariamente – o início da vida, a expectativa de futuros – e o vazio que o espera ao fim do expediente, quando volta para casa sozinho, sem filhos, sem esposa e sem desejo de tê-los.   

Na clínica onde trabalha, o tempo de atendimento é cronometrado. A empatia é vista como desperdício. O que realmente conta é o lucro. Germano realiza ultrassonografias em gestantes, mas não há espaço para vínculo nem para escuta. Ele vê corações batendo, mas não se permite sentir. Essa rotina automatizada, quase mecânica, reforça sua desconexão com o mundo e com o próprio corpo.    

A medicina, neste romance, não é um campo de cuidado, mas um palco de contradições. Ela representa o desejo de controle sobre o caos, mas também o fracasso inevitável desse controle. Germano carrega esse fracasso como quem volta para casa com um jaleco limpo e uma alma em ruínas.

Bianca – Há algo de Maurício em Germano? Se sim, quanto?

Maurício – Há, inevitavelmente. Todo personagem carrega traços do autor, mesmo que distorcidos, ampliados ou negados. No caso de Germano, há pontos de aproximação e de afastamento que são fundamentais para entender sua construção.  

O que me aproxima dele é o gosto literário – Roth, Cortázar, Auster – autores que também exploram a falência das relações, o absurdo cotidiano e a busca por sentido. Também somos filhos únicos, temos a mesma profissão, compartilhamos a experiência da negritude e crescemos sob a sombra de um pai alcoólatra. Esses elementos me permitiram acessar certas camadas emocionais com mais precisão.   

Mas também há distâncias importantes. Germano é misógino, inadequado nas relações com mulheres e viciado em prostituição. Esses traços não me pertencem, e, justamente por isso, exigiram de mim um esforço ético e estético para serem escritos. Não os escrevi com julgamento, mas com desconforto – e talvez seja esse desconforto que torne o personagem mais verdadeiro.

Bianca – A filosofia, principalmente o existencialismo, é presença marcante e clara no romance. Há alusões a Camus, Sartre e Philip Roth. Como essa influência reverbera na sua escrita?

Maurício – A filosofia existencialista não apenas atravessa o romance; ela o estrutura. As alusões a Camus, Sartre, Roth e Schopenhauer não são acenos eruditos, mas parte do tecido narrativo e emocional da obra.  

O mito de Sísifo, de Camus, aparece como metáfora da repetição sem sentido, da tentativa de dar forma ao caos e da ideia de que o absurdo não precisa de solução. Algo que Germano vive diariamente e que enxerga nas pessoas que o rodeiam. 

A premissa de que “somos ou não somos dependendo do olhar do outro, inspirada em Sartre, está presente na forma como Germano se percebe e se constrói socialmente, sempre em tensão com o olhar alheio.  

Roth aparece com força em O complexo de Portnoy e O professor do desejo, obras que influenciaram diretamente a construção da sexualidade e a sensação de inadequação de Germano. Há ecos da ironia, da exposição crua do desejo e da falência afetiva.   

O título do romance (O homem não foi feito para ser feliz) carrega a sombra de Schopenhauer, com sua visão trágica da existência e sua recusa às promessas de plenitude.  

Essas influências reverberam na minha escrita como inquietação. E talvez seja isso que o existencialismo me ensinou: que a literatura não precisa salvar, mas pode iluminar o abismo.

Bianca – Falando em escrita, você tem alguma obra na nova em mente? Um próximo romance, por exemplo?

Maurício – Sim, estou trabalhando em um segundo romance. Ainda em processo, mas já bastante vivo em mim. Mantenho o eixo do meu projeto literário: personagens racializados que enfrentam dilemas existenciais e afetivos, sempre atravessados por estruturas sociais que os moldam e, muitas vezes, os ferem.  Se, no primeiro romance, a angústia vinha da inadequação e da solidão, neste novo trabalho ela também se manifesta de outras formas – mais silenciosas, mais difusas, talvez até mais traiçoeiras. 

O que me interessa continua sendo o humano em sua fratura: o que não se encaixa, o que não se resolve e o que insiste em permanecer. A literatura, para mim, é o lugar onde o que é incômodo pode finalmente ser dito.

Bianca – Para finalizar, a pergunta que fazemos pra todo mundo: quais os 5 livros que mudaram a sua vida?

Maurício – Escolher apenas cinco é quase uma violência contra a memória afetiva que a literatura constrói. Mas, se penso em livros que não apenas me marcaram, mas me transformaram, esses são inevitáveis:

1. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, porque me ensinou que a ironia pode ser uma forma de lucidez e que a morte pode narrar a vida com mais clareza do que os vivos.

2. O lugar, de Annie Ernaux, pela coragem de transformar a experiência pessoal em matéria política e literária, sem ornamentos e sem concessões.

3. O complexo de Portnoy, de Philip Roth, porque escancara o desejo, o constrangimento, a inadequação e me mostrou que a literatura pode ser brutalmente honesta sem perder a inteligência.

4. Histórias de Cronópios e de Famas, de Julio Cortázar, pela liberdade formal, pelo humor absurdo e pela delicadeza com que o nonsense pode revelar o essencial.

5. Canção para ninar menino grande, de Conceição Evaristo, porque revela com força e sensibilidade as contradições da masculinidade negra e me ensinou que escutar as vozes femininas também é um gesto literário e ético.

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