Entre a distopia e a cura: protagonismo nipo-brasileiro em “Tempos Amarelos”, de Verônica Yamada

Produtividade ininterrupta, obsessão por aumento de performance e uma rotina sem sentido e sem afeto. Poderíamos estar falando do presente, mas Verônica Yamada, autora de Tempos Amarelos, publicado pela Editora Sedas, nos lança uma década à frente, em uma São Paulo distópica muito mais próxima do nosso dia a dia do que gostaríamos. 

É 2035 e Marina mora sozinha em um apartamento no Jabaquara. Ali, ela trabalha incessantemente em frente a uma tela enquanto vive à base de café, suplementos e está conectada a uma sonda vesical, afinal time is money e ir ao banheiro toma tempo. Mas não é “apenas” o tempo e o dinheiro que são considerados nessa troca, corpo e mente também. Assim, a jovem nipo-brasileira entra em battery-out, quando corpo e mente colapsam diante da ausência. Ausência de descanso, de comida, mas também de relações interpessoais. 

Em uma espécie de coma, seu corpo trava uma batalha para se recuperar com o auxílio de máquinas que, ao mesmo tempo em que tinham consumido sua consciência, agora também eram responsáveis por mantê-la viva, como em um sistema de codependência. Enquanto isso, a mente de Marina tem que enfrentar um mundo de escuridão, fora do espaço e do tempo, como a toca de coelho de Alice. Em meio a lembranças, objetos esquecidos e visitas inusitadas, do seu cachorrinho de estimação da infância a uma barata gigante, ela passa a habitar os destroços da própria vida, sendo obrigada a parar e olhar para si, encarar o passado e o presente para vislumbrar um futuro.

No mesmo hospital onde Marina está internada inconsciente, Kaue, também nipo-brasileiro, desperta após um longo coma para em uma cena, infelizmente, típica do racismo à brasileira ser recebido por um sorriso no rosto à medida que é chamado de “japinha”. Ele quer falar que tem nome e que não gosta de ser chamado daquela forma, mas ainda não havia recuperado a voz. O que em uma primeira camada pode ficar apenas na literalidade da coisa, na verdade, é essencial para entender o trabalho da Verônica Yamada: a questão da voz. Ter a própria voz como uma mulher brasileira e asiática, e colocar em pauta assuntos como corpo, raça, ancestralidade, traumas, a partir dessa realidade. 

O ponto de partida da Verônica é essa sociedade capitalista e hiperconectada, porém, é no encontro entre os dois personagens que ela desenvolve de forma mais aprofundada os tópicos acima. E esse encontro ocorre no inconsciente, no mundo escuro e vazio no qual Marina agora habitava, e que Kaue, por coincidência ou destino, passa a frequentar durante o sono. 

Marina sentia que tudo ali no inconsciente estava conectado. Todas as figuras que apareciam, tudo o que ela sentia, todas as lembranças estavam conectadas. No fim, ela era uma só: consciente, inconsciente, corpo e alma.” 

Leia também: A solidariedade entre as mulheres em “Escolhas e Destinos”, de Maria Nivalda

Com a narrativa já em tom onírico, a distopia, então, é afastada e permanece como pano de fundo ao processo de recuperação, ou cura, palavra que tem sido bastante associada a esse tipo de narrativa, a ficção de cura ou healing fiction , com a qual a própria autora identifica seu texto. Uma cura não apenas física, mas principalmente emocional, de ambos os personagens, que precisam se perdoar e se reinventar. Marina, no mundo do inconsciente, e Kaue, no mundo consciente, têm esse não-lugar. Espaço em que esses dois mundos se encontram e no qual eles partilham os traumas e a culpa relacionados à intensa cobrança por parte das famílias asiático-brasileiras, além da sociedade como um todo, que associa um estereótipo de produtividade sobre-humana às pessoas amarelas.

“Fomos criados de um jeito que nunca éramos o suficiente, nunca estávamos certos, e a culpa de tudo era sempre nossa.”

Verônica Yamada explora gêneros e estilos, da distopia à ficção de cura, passando até pelo romance romântico, com reviravoltas, inclusive. Sendo assim, são muitas as conexões e possibilidades de olhar o texto através de uma intertextualidade e, assim, estabelecer diálogos com outras obras.

Verônica Yamada

Para além dos paralelos com outras ficções de cura, como Antes que o Café Esfrie, de Toshikazu Kawaguchi, traduzido do inglês por Priscila Catão, e que assim como Verônica, tem uma escrita leve e delicada ao tratar de temas difíceis como o luto, ao Marina cair no mundo inconsciente, por exemplo, como Alice na toca do coelho, além de Lewis Carroll, me veio à mente um conto de ficção científica da escritora japonesa Izumi Suzuki.

Nele, traduzido por Rita Kohl e publicado na coletânea Tédio Terminal, pessoas vão para uma clínica e entram em uma espécie de realidade virtual na qual revisitam o passado em busca de um recomeço, o que a personagem não chega a encontrar, e enquanto Marina tem como gato de cheshire um corvo sem asas, em Lembranças do Seaside Club, título do conto, a protagonista tem uma poltrona falante. A vibe do conto é bem diferente do estilo da Verônica. Na verdade, é tudo bem pesado e melancólico, mas esses elementos de fantasia e ficção científica, somados à importância de fazer as pazes com o passado para sair de uma espiral de culpa e arrependimento, me deram esse insight.

O absurdo também é algo que chamou minha atenção. Como não lembrar de Kafka com uma barata gigante, ou seria Gregor Samsa, invadindo o inconsciente de Marina? 

Tempos Amarelos, no fim, revelou-se um convite para aproveitar a viagem entre estilos, assim como acompanhar o processo de reencontro desses personagens com eles mesmos, saindo da desumanização imposta pelo capital e pelo racismo e abraçando suas próprias identidades.

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