Ele já navegou na Jangada de Welles (2019) e viu estranhos formando uma espécie de família em Mais Pesado é o Céu (2023). Chegou a hora do multitarefas Petrus Cariry enfrentar o fim do mundo.
Ela dançou balé para quem quis ver em Pacarrete (2019) e entrou num mundo paralelo levada pela literatura em Lispectorante (2024). Era chegada a hora de Marcélia Cartaxo, com seu adorável sotaque e deliciosa cadência na fala, enfrentar o fim do mundo.
Alice (Fátima Macedo) mora com a mãe Helena (Marcélia Cartaxo) na pousada da família, hoje abandonada. O imóvel fica à beira-mar e está ameaçado de ser tragado pela maré ou desmoronar. Isso não impede, é claro, que chegue o imposto do imóvel para pagar, uma quantia exorbitante. Esse é só um dos dramas de Alice: ela também está com a menstruação atrasada e vem sentindo enjoos.
Como o jangadeiro Jacaré do filme de Welles, o pai de Alice desapareceu no mar enquanto trabalhava. A mãe não fala muito dele, mesmo com a insistência da menina. Em determinado momento, a amiga Elisa (Larissa Góes) pergunta a Alice se ela era mais apegada ao pai, ao que ela responde que a ausência aumenta o sentimento. Elisa vai mais além, dizendo que a convivência com a mãe deve desgastar a relação das duas. Pode ser verdade no filme, mas acredito que, na vida real, a convivência saudável, com limites e espaço para navegar, só tem a fortalecer uma relação, não a desgastar.
A ação de A Praia do Fim do Mundo acontece na fictícia Ciarema, um dia já chamada de “Cancún brasileira”. É uma referência clara a Maragogi, o “Caribe brasileiro”, e ao drama que ameaça diversos bairros de Maceió, que estão afundando. Isso vem acontecendo como consequência da exploração de sal pela firma Braskem, que já foi responsável pelo deslocamento forçado de 60 mil pessoas desde 2018 na capital alagoana.
Muito se falou no fim do mundo em 2012: como um calendário Maia ia só até aquele ano, acreditou-se ser uma profecia de que o mundo acabaria. Muitos juram de pé junto que o mundo acabou mesmo em 2012 e estamos vivendo no pós-apocalipse, de tão conturbados que são os dias atuais. Podemos afirmar com certeza que o fim do mundo é combustível para a imaginação, por isso foram feitos tantos e tão variados filmes sobre ele, incluindo Dr Fantástico (1964), Independence Day (1996) e Melancolia (2011).
Baleias são animais com alta carga simbólica. Nos países de língua inglesa, a mais famosa é Moby Dick, a baleia branca do romance de Herman Melville, cuja leitura é um ponto importante no filme de Aronofsky intitulado justamente A Baleia (2022), que rendeu o Oscar de Melhor Ator a Brendan Fraser. Nos países de maioria católica, como é o caso do Brasil, a baleia mais famosa é a que engoliu Jonas na história bíblica. Helena narra essa história para uma Alice que dorme após ficar admirando um quadro com baleias em seu quarto – e a história ressoa perfeitamente, com Jonas e Alice como arautos da desgraça para evitar que a tragédia vitime muitas pessoas.
A fotografia em preto e branco e o “mood” geral do filme – começando pela onda que não avança, mas sim recua, logo no início – traz à memória O Farol (2019) de Robert Eggers. Algumas cenas são realmente inspiradas, como a mãe jogando o passado para debaixo do tapete… ou da cama, como é o caso aqui.
Há ocasiões em que a trilha sonora cria suspense e aponta para a existência de algum mistério, e este vem na forma de um sótão onde Alice é proibida de subir. Como se não bastasse um, há outro mistério: o que faz um catador de dejetos com todo o lixo que recolhe e leva para casa? A sensação é que algo terrível vai acontecer, mas a verdade é mais dolorosa: algo terrível já está acontecendo.
Finalizado em 2021, A Praia do Fim do Mundo fez carreira e sucesso nos festivais por que passou, ganhando como Melhor Filme tanto no 31° Cine Ceará quanto no 16° Fest Aruanda. A protagonista Marcélia Cartaxo foi recentemente homenageada com o Troféu Oscarito no 53° Festival de Cinema de Gramado. Sobre sua relação de trabalho com ela, o diretor Petrus Cariry declarou:
“Marcélia trouxe ao filme uma densidade emocional silenciosa que nem sempre vemos no cinema. Um filme que fala de fim e recomeço, solidão e memória, temas que ganham outra dimensão quando passam pelo corpo e pela voz de uma artista como ela. Sou grato por esse encontro e por tudo que construímos juntos”.
A Praia do Fim do Mundo é mais um filme sobre o embate entre passado e presente. O passado vive na figura de Helena, que não quer deixar a casa porque sempre viveu lá e inclusive passou por algumas crises semelhantes sem abandonar o lugar. O presente se faz presente na perspectiva de Alice ter um filho, e precisar pensar em como e onde quer estar no terceiro tempo, o futuro. Tem ares de filme cult, mas dialoga com todos os públicos. É, pelo que já poderíamos esperar por conta dos talentos envolvidos, uma pérola do cinema brasileiro.
“A Praia do Fim do Mundo” chega aos cinemas em 04 de setembro. Confira o trailer:
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