Você já foi à Bahia? – é a pergunta que nos faz o título de um filme da Disney de 1944. Eu já fui à Bahia – três vezes, para ser mais precisa, e espero voltar muitas mais. Amo tudo relacionado à baianidade, condição do ser baiano. Então como eu podia recusar uma sessão sobre os 3 Obás de Xangô, definidos em carta de um deles como aqueles que “engravidaram do povo e pariram a Bahia?”. Porque os três aqui citados e lindamente homenageados são a personificação da baianidade.
Carybé (1911-1997) foi um pesquisador, historiador, jornalista e multiartista argentino radicado no Brasil e, com muito orgulho, na Bahia.
Jorge Amado (1912-2001) foi um escritor baiano e o romancista mais adaptado para o audiovisual na História do Brasil.
Dorival Caymmi (1914-2008) foi, além de sua atividade amplamente reconhecida como cantor e compositor, também pintor, poeta e ator.
Os três Obás – sendo “Obá” um título exclusivamente brasileiro dado àqueles que faziam uma importante ponte entre os terreiros e a sociedade – têm suas trajetórias entrelaçadas de todos os modos. Logo no começo, Jorge Amado conta como fugiu do internato aos treze anos e aprendeu o poder da amizade. Se repararmos bem, a música de fundo para este relato é a famosa “Maracangalha” de Dorival Caymmi. Em outro entrelaçamento, Carybé conta que quis fazer uma visita especialmente demorada à Bahia por causa da impressão nele causada pelo livro “Jubiabá”, de Jorge Amado. Outro romance de Jorge, “Mar Morto”, foi inspiração para uma música de Caymmi. E para a música “O Que é Que a Baiana Tem”, de Caymmi, Carybé tocava pandeiro, acompanhando Carmen Miranda em turnê por Buenos Aires. Coincidências que fariam deste encontro de almas mais que especial.
Um riquíssimo material foi pesquisado e resgatado para fazer o filme. São imagens de arquivo dos três, entrevistas de um passado nem tão distante (são trechos filmados para uma película sobre Jorge Amado em 1995, projeto de João Moreira Salles), trechos de filmes feitos a partir da obra de Jorge Amado, imagens de arquivo dos terreiros, de pescadores e da festa de Iemanjá.
O documentário não foge da obrigatoriedade de falar sobre a perseguição às religiões de matriz africana, algo que infelizmente ainda vemos nos dias atuais – e que vem crescendo nos últimos anos. Jorge Amado, enquanto deputado federal, foi responsável pela adição da cláusula sobre liberdade religiosa na Constituição de 1946, que também aparece na mais recente, de 1988. Mas todos nós sabemos que o país é laico só no papel.
A democracia racial, mito defendido por Gilberto Freyre nos anos 1930 em seu livro “Casa Grande e Senzala”, não passa disso: um mito, uma falácia. Mas há um lugar onde todas as etnias são bem-vindas e convivem em harmonia: os terreiros do candomblé. Muniz Sodré, no documentário, afirma que não vale nada só o discurso antirracista, valem as atitudes antirracistas, e é no terreiro que você pode praticá-las.
As características dos baianos, ou a eles associadas, foram matérias-primas para as obras do trio Carybé-Amado-Caymmi, o que significa que eles foram fundamentais para forjar o conceito de baianidade. O candomblé também o foi, como na citada aceitação do poder feminino pelos praticantes da religião em particular e pelos baianos em geral – ou ao menos por Jorge Amado, que salpicou sua literatura de mulheres fortes.
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Não podia faltar Zélia Gattai, escritora, companheira de uma vida inteira de Jorge Amado e Omi Tobi no terreiro. Seu título significa “dona da grande água” e era filha de Oxum. Ela também conta as intimidades do marido, notadamente todas as coisas que ele não sabe fazer, durante uma entrevista bem-humorada.
É interessante descobrir que eles passearam por diversas artes, além daquela que os tornou mais conhecidos. Carybé escreveu crônicas e sempre desejou saber tocar violão como Caymmi, que era um apaixonado pelas cores e artes plásticas. Não é difícil encontrar exemplares de livros de Jorge Amado com ilustração de capa de Carybé. Na amizade, tudo se complementa.
3 Obás de Xangô é narrado por outro baiano ilustre, Lázaro Ramos. Começou sua carreira nos anos 90, participando do cult trash “Cinderela Baiana”, tido como um dos piores filmes já feitos no país, e usou o cachê deste trabalho para ter aulas de atuação. Funcionou. Despontou para o mundo como um dos quatro Antônios da peça “A Máquina” – os outros três eram Wagner Moura, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão. Hoje, além de ator, Lázaro é apresentador, diretor e produtor, sempre com muito êxito em todas as funções.
3 Obás de Xangô ganhou o prêmio de Melhor Documentário na edição de 2024 do Festival do Rio, Melhor Documentário Brasileiro pelo Júri Popular na Mostra de Cinema de São Paulo e Melhor Longa também pelo Júri Popular da Mostra de Cinema de Tiradentes. Foi vencedor ainda do Troféu Grande Otelo de Melhor Documentário em Longa-metragem no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Uma carreira de sucesso para um filme brilhante.
Nos últimos tempos, vemos como tendência honrar a ancestralidade. É exatamente isso que 3 Obás de Xangô faz, ao dar a mesma importância para homens das artes, que um dia se encontraram e, como não podia deixar de ser, frutificou uma amizade que ultrapassa fronteiras para definir essa verdadeira entidade que é a Bahia.
“3 Obás de Xangô” chega aos cinemas em 04 de setembro. Confira o trailer:
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