“Kitchen”: a escrita onírica e transgressora de Banana Yoshimoto

A cozinha como refúgio e o barulho da geladeira no meio da noite a dizer que, sim, a vida continua mesmo que ao redor tudo deixe de existir. Essa é a atmosfera com a qual nos deparamos no início da leitura de Kitchen, da escritora japonesa Banana Yoshimoto.

Banana ficou famosa por ter uma escrita oníria, melancólica e transgressora. Filha do poeta e intelectual Takaaki Yoshimoto, nasceu em Tóquio, em 24 de julho de 1964, como Mahoko Yoshimoto, mas, segundo ela, adotou o pseudônimo Banana por ser apaixonada pelas flores de bananeira. Kitchen, sua obra de estreia, foi originalmente publicada enquanto ela ainda estava na Universidade, em 1988, e ganhou o prêmio literário Izumi Kyoka, conquistando seu espaço no mercado editorial japonês e internacional. 

O romance, que recebeu uma tradução direta do japonês em três mãos, por Lica Hashimoto, Lui Navarro e Fabio Pomponio Saldanha, via Estação Liberdade, em 2025, consiste em uma história mais longa, dividida em duas partes: Kitchen e Kitchen II — Lua Cheia; e uma história mais curta: Moonlight Shadow.

A protagonista e narradora de Kitchen, Mikage Sakurai, é uma jovem que está tentando lidar com o luto pela perda recente da única família que lhe restava, a avó. Após a morte desse último elo sanguíneo, restavam apenas ela e uma cozinha sem sua dona e seus cheiros cotidianos, até que um convite inusitado bate à porta.   

Yuichi Tanabe, conhecido da vizinhança e estudante na mesma Universidade de Mikage, propõe que ela se junte a ele e a mãe no apartamento onde moram só os dois, já que ela estava sozinha. Mesmo ciente da estranheza e transitoriedade da situação, ela aceita e é acolhida por essa família com a qual não tem qualquer vínculo de sangue.

Assim, temos mais um personagem com uma composição familiar centrada em uma figura feminina e, assim como Mikage, desde muito cedo, não tem ao redor de si uma família tradicional, por assim dizer, com os pais, um homem e uma mulher, e um filho ou filhos. 

Sendo que tradicional é algo que os Tanabe, definitivamente, não são. Eriko, a mãe de Yuchi, é uma mulher trans, para a surpresa e encantamento de Mikage, que a descreve como um verdadeiro foco de luz:

Aquela era a mãe dele? Eu estava maravilhada e não conseguia tirar os olhos dela. Os cabelos soltos na altura dos ombros, o brilho profundo dos olhos amendoados, o belo formato dos lábios, o nariz esguio — e uma luz brilhante, similar a uma vibração de energia vital, que emanava de todo seu ser...”

Eriko era o pai biológico de Yuchi e com a morte da esposa, assumiu essa identidade feminina, tornando-se a mãe, uma personagem queer determinada e corajosa, mas que também encarava sua própria solidão.

Para Mikage, o apartamento dos Tanabe, principalmente a cozinha que mãe e filho praticamente não usavam e que ela passou a comandar, funciona como um refúgio, uma etapa de maturação e fortalecimento para que a protagonista pudesse reencontrar-se consigo mesma, redescobrir-se como o novo “eu” que emerge do luto. 

Para além desse processo interno, a narradora ainda precisa encarar um mundo bastante duro com quem foge dos padrões pré-estabelecidos, principalmente sociais e de gênero, afinal, Mikage também não performa a feminilidade que é esperada de uma jovem japonesa nos anos 1980.

Já em Moonlight shadow, o luto assume um tom mais onírico e poético enquanto acompanhamos uma jovem, Satsuki, que perdeu o namorado em um acidente de carro. Na narrativa, o mundo dos mortos e o mundo dos vivos se tocam e desse encontro, que carrega uma aura de sonho, surge a oportunidade de entender e aceitar a morte menos como despedida definitiva e mais como uma etapa, um “até algum dia”.

Banana Yoshimoto/Fumiya Sawa

Luto

O luto, na verdade, acabou virando um tema abordado em mais oportunidades pela autora. Em Doce Amanhã, também publicado pela Estação Liberdade, com tradução de Jefferson José Teixeira, Banana aprofunda essa conexão mundo visível/dos vivos e mundo invisível/dos mortos ao trazer novamente uma jovem assolada pelo luto. Nesse romance, após um acidente de carro tirar a vida de seu namorado e fazê-la viver uma experiência de quase morte, o mundo dos vivos e dos mortos se mesclam. Sayo, a narradora-protagonista, tem um encontro com seu avô e seu cachorrinho de estimação, ambos já falecidos. O livro foi escrito após o tsunami de 2011 e Banana deixa bem claro no posfácio a relação entre a escrita do romance e a tragédia.

Seiko Ito, escritor também japonês, faz algo semelhante em Radio Imaginação, publicado pela Companhia das Letras com tradução de Rita Kohl. Aqui, a referência ao tsunami é a tônica do livro, mesmo que a palavra tsunami jamais seja dita expressamente. Após o evento que vitimou mais de 20 mil pessoas, um programa de rádio que chegava por ondas que ninguém conseguia identificar passou a ser ouvido por algumas pessoas. Apresentado por um locutor que se encontrava em cima de uma árvore e com algumas participações especiais entre as músicas, alguns passaram a pensar que aquelas seriam as vozes dos mortos tentando se comunicar com os vivos. O texto é leve e até divertido, mas profundamente tocante.

Leia também: 5 autoras para conhecer a literatura japonesa contemporânea

São livros que, dentro de seus estilos, abordam o luto e os traumas coletivos, conversando com uma realidade na qual pessoas, por exemplo, vão a uma Agência dos Correios oficialmente desativada para enviar cartas para os mortos. 

Na Ilha Awashima, no Japão, o “Missing Post Office” abriga mais de 60.000 correspondências: cartas enviadas de todo o Japão para aqueles que não têm endereço para encaminhamento. Amigos e animais de estimação perdidos, pessoas do passado e do futuro, e, mais frequentemente, os mortos, como a mensagem a seguir, na qual uma criança escreve uma carta para seu cachorrinho, que assim como o animal de estimação de Sayo, em Doce Amanhã, está no mundo dos mortos:

“Para Ron, no céu,
Oi, tudo bem com você? Correndo muito por aí? Conseguiu encontrar o papai? Se sim, faça ele lhe dar muitas salsichas.
Nos vemos novamente algum dia, fique bem.”

Tabus

Relações familiares fora do convencional, e muitas vezes recheadas de tabus, é outro tema que se tornou caro à Banana. 

Em Kitchen, esse afastamento do que é considerado tradicional aparece na mãe de Yuchi, uma mulher trans que anteriormente era o seu pai biológico, e na própria composição que os três, Yuchi, Eriko e Mikage, construíram de família enquanto aquele apartamento era um lar para eles. 

Em The premonition, outro romance da autora, também de 1988, e traduzido para o inglês por Asa Yoneda, Banana já carrega a narrativa de tabus ao trazer dois irmãos de criação que acabam se apaixonando na juventude em meio à revelações de segredos de uma família bem peculiar. Algo nessa linha também aparece em Doce Amanhã através da confissão de um personagem que havia se casado com a irmã por parte de pai. 

*

Banana escreve de forma sutil e sensível sobre temas profundos e dolorosos, além de, como destaca a especialista em literatura japonesa Profa. Dra. Joy N. Afonso no texto de orelha dessa edição de Kitchen, criar personagens femininas livres. A liberdade de ser. A liberdade de estar em constante transformação. 

Acredito que em tempos de cobranças por performances que invadem até o nosso sono, é importante termos personagens como Mikage, que se permite sofrer, ser ingênua, se lançar, e até pegar um táxi de uma cidade a outra para levar um prato de carne de porco empanada como sinal de afeto. 

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