Há quem conte histórias de maneira óbvia e há quem conte vivências de maneira peculiar, Os Anjos vão para o céu, peça de Mário Bortolotto está nesta segunda categoria e volta para os palcos do Cemitério de Automóveis 23 anos após sua última temporada.
A peça é envolta por uma atmosfera noir, sendo reforçada através de seus personagens: pessoas anônimas que vivem sua solidão, algumas em busca de algum preenchimento e outras mergulhadas no vazio existencial.
Um idoso que contrata um detetive para achar o filho perdido, uma mulher misteriosa que foge de um cara com síndrome de Peter Pan em um bar, prostitutas que persistem em fazer o seu trabalho, tudo está interligado e completamente desconexo: é a crônica de cada marginal sendo retratada de maneira não linear perante nossos olhos.
Não é novidade que a escrita de Mário tende a retratar pessoas em seus momentos infortúnios, o dramaturgo e diretor com escrita e estética inconfundível consegue espremer, sem receio o que há de mais perverso em nosso meio. Mas, será que uma peça escrita a tanto tempo continua vigente?
A dramaturgia em questão apresenta um paradoxo intrigante: embora contenha falas datadas e problematizadoras, que poderiam ser vistas como um obstáculo à sua apreciação, ela consegue transcender essas limitações e se apresentar como uma poderosa alegoria dos dilemas contemporâneos. Ao abordar temas da complexidade humana, a obra nos leva a refletir sobre realidades distantes e desconhecidas, mas que, ilogicamente, nos são próximas.
Os atores, por sua vez, demonstram compromisso com o projeto, entregando-se às suas personagens com convicção. Embora alguns se destaquem mais, a atuação como um todo contribui para a atmosfera única da peça.
O que talvez cause estranheza em alguns espectadores é a sensação de que a peça fica inacabada, sem um final convencional ou uma resolução clara. No entanto, é justamente essa característica que a torna tão pertinente e reflexiva. Ao não oferecer respostas fáceis ou conclusões definitivas, a peça nos remete à própria natureza da vida, em que as questões profundas não encontram soluções simplistas. Não se pode resolver a vida numa mesa de bar. Existem dilemas que nos acompanham constantemente, exigindo reflexão e questionamento contínuos. Nesse sentido, a peça, ao se apresentar como uma obra “inacabada”, nos convida a mergulhar mais fundo nessas questões, a refletir sobre a natureza da existência e a encontrar nossas próprias respostas.
Assim, longe de ser uma falha, a falta de um final convencional torna-se uma força da peça, um convite à reflexão e ao debate. Ela nos lembra que a arte pode ser um espelho da vida em toda a sua complexidade e ambiguidade, desafiando-nos a pensar, a sentir e a questionar.
Ficha Técnica:
Texto e Direção: Mário Bortolotto
Iluminação e Trilha Sonora: Mário Bortolotto
Elenco: Ana Barbara, Carcarah, Daniel Sato, Debora Sttér, Eldo Mendes, Fernanda Gonçalves, Gabriel Batista, Johnnas Oliva, Madu Possatto, Marcos Amaral, Nelson Peres, Rebecca Leão, Thamires Meraki, Walter Figueiredo.
Operação Técnica: Davi Puga e Isabela Bortolotto
Programação Visual: Rebecca Leão
Ilustração: Carcarah
Fotos: Thamires Meraki
Serviço:
Teatro Cemitério de Automóveis
Rua Francisca Miquelina, 155 – Bela Vista, São Paulo/SP
Temporada: 25 de julho a 17 de agosto de 2025
Horários: Sextas e sábados às 21h; domingos às 20h
Ingressos: R$ 40 (inteira) / R$ 20 (meia)
Duração: 60 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos
Capacidade: 50 lugares
Ingressos: Antecipado no Sympla: Sympla Cemitério de Automóveis
& na bilheteria do teatro, aberta sempre 1h antes do espetáculo
Acessibilidade: O espaço possui acessibilidade para cadeirantes
Redes Sociais: https://www.instagram.com/cemiteriodeautomoveis