Era quarta-feira, 4 de junho, quando a chamada de vídeo conectou, às 16h em ponto. Francisco acendeu um Marlboro. Disse que só estava fumando por agora — o tornozelo torcido dificultava a rotina, e o novo hábito veio como companhia. Apesar da semana corrida, ele arranjou uma hora para falar comigo sobre a Revolução de 1930. A pergunta foi direta: “Que fatores sociais, econômicos e políticos contribuíram para o desfecho revolucionário de 1930?”. O pesquisador não hesitou. Mas antes de se aprofundar nas tensões sociais ou nos acordos silenciosos entre elites, fez questão de apontar um detalhe que parece semântico — mas não é: o próprio uso da palavra “revolução”.
Por isso, não se apressa em aceitar ou negar rótulos. Quando o tema é a Revolução de 30, o pesquisador pondera: “Você vai pegar historiadores que vão ter opiniões diametralmente opostas. E é evidente que tudo isso passa pela sua avaliação da figura do Getúlio Vargas, pela sua avaliação da importância da Revolução de 1930 e do que foi a Revolução de 1930”.
A palavra “revolução”, afinal, carrega em si promessas: de transformação, de quebra, de novos começos. Para alguns, o movimento de 1930 foi apenas um golpe articulado por elites descontentes com a alternância de poder da Primeira República. Para outros, foi uma virada de chave — ainda que parcial — nos rumos do país.
Francisco se alinha ao segundo grupo. “Eu acho que [a Revolução de 30] tem elementos de manutenção, sim, mas tem elementos suficientes para que a gente possa chamar de Revolução e usar esse termo”. O argumento não ignora as continuidades entre os dois regimes, mas aponta que houveram mudanças concretas, estruturais.
“A mudança entre a Primeira República e o Brasil depois da Revolução de 1930 é concreta e substancialmente diferente ao ponto de eu achar que foi, sim, uma revolução e que foi, sim, uma ruptura com a ordem anterior”.
Francisco Quartim de Moraes é graduado em História pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor na área – pela mesma instituição. Pesquisa o período histórico que trouxe Getúlio Vargas à presidência da república como um profissional que reconstitui com cuidado uma pintura antiga: atento às camadas de verniz que o tempo e a política aplicaram sobre os fatos, buscando aquilo que a História oficial preferiu deixar de lado.
Ele cita exemplos que ilustram essa ruptura: o surgimento de concursos públicos, o fim das chamadas “derrubadas” — quando a troca de presidente implicava uma substituição total do aparato estatal —, a reorganização da burocracia e, especialmente, o novo Código Eleitoral. “Passamos a ter, por exemplo, o Código Eleitoral, que é publicado em 24 de fevereiro de 1932, e que é avançadíssimo para a época”, destaca. O sufrágio feminino foi incluído ali, com os mesmos pré-requisitos do voto masculino. “Isso foi um avanço importante, porque metade do Brasil passou a poder exercer os seus direitos políticos. E na maior parte do mundo isso ainda não acontecia. Era um ou outro país que já contava com o voto feminino, mas em países centrais, como a França, que é o berço do feminismo, o voto feminino só chega em 1945, muito posteriormente ao do Brasil”.
Com o cigarro entre os dedos e a paciência de quem estuda história para além das datas, Moraes recua alguns anos no tempo para explicar quem era o homem que viria a protagonizar os acontecimentos de 1930.
Getúlio não nasceu mito. Foi se moldando a ele.
Francisco o descreve com precisão quase íntima: um homem de baixa estatura, “levemente gordo”, sotaque carregado do interior dos Pampas. Não era bonito, nem especialmente carismático aos olhos do senso comum. “Mas ele certamente tinha o seu carisma e a sua capacidade retórica”, avalia. Era alguém que sabia usar a palavra. Ainda jovem, com pouco mais de vinte anos, foi escolhido por seus colegas para discursar no enterro de Júlio de Castilhos — ícone do castilhismo e principal nome do Partido Republicano Rio-Grandense, de onde Getúlio herdaria suas primeiras bandeiras e suas primeiras batalhas.
Mas o carisma de Vargas não vinha do espetáculo. Não era o do orador inflamado ou do político de gestos grandiosos. Era mais sutil: uma mistura de clareza no falar, pragmatismo nas ideias e habilidade para o jogo político. “Ele não era uma figura rebuscada, incompreensível”, explica Francisco. “Mas também não era do tipo ‘nossa, que discurso incrível’. Era um gaúcho típico do interior, com trejeitos de fala bem característicos”, observa o historiador.
Ainda assim, esse homem de voz clara e aspecto comum seria, décadas depois, intitulado “pai dos pobres”, cercado por multidões e lágrimas. O Getúlio de carne e osso — o jovem estudante de direito, orador correto, político do interior — coexistia com outro Getúlio, mais etéreo, menos datável. Uma figura que ultrapassava o corpo que habitava. Era o homem comum que, ao se manter no poder por quinze anos seguidos — quase oito deles sob regime ditatorial — e depois retornar à presidência por meio do voto popular, começava a se parecer com algo maior.
Da história ao símbolo: a construção dos mitos políticos
Quem ajuda a decifrar essa transformação é o professor Marcos Welinton Freitas das Mercês. Publicitário e pesquisador, ele transita por áreas como mitologia, arquétipos, comportamento do consumidor, comunicação e estudos sobre símbolos — um foco multidisciplinar que lhe permite olhar para figuras históricas como Getúlio Vargas e apreender o que há por trás de toda essa elevação da pessoa a um ser quase mítico, capaz de habitar o imaginário coletivo com a força de um símbolo.
Encontrei o professor Marcos em uma de minhas pesquisas pela plataforma Lattes, enquanto buscava algum especialista que pudesse me ajudar a entender como esse fenômeno acontece — algo bastante comum na rotina do jornalista, que está constantemente à procura de fontes capazes de lançar luz sobre temas que ainda lhe escapam. Depois de alguns minutos de pesquisa por termos como “símbolos”, “mitos” e “arquétipos”, encontrei o perfil de Marcos e comecei a pensar em uma forma rápida de entrar em contato com ele. Não vou me estender aqui sobre os detalhes de como consegui encontrá-lo no Instagram, mas o desfecho dessa busca já está claro no texto que redijo agora: eu o encontrei — e ele topou responder às seis perguntas que mais me intrigavam até ali. A primeira delas: o que define, afinal, um mito? E como os mitos continuam sendo criados e ressignificados mesmo em tempos considerados “racionais” como os nossos?
Antes de me lançar ao terreno movediço entre razão e encantamento, o professor Marcos me ajuda a entender como nascem os mitos. “Não existe um consenso entre autores sobre o que de fato é um mito”, diz, lembrando que o termo carrega uma polissemia que o aproxima de muitos sentidos. Mas há um ponto de partida possível: o mito, em sua forma mais primária, pode ser entendido como uma “narrativa alegórica” que conta a história de um ente sobrenatural e que apresenta um princípio de nascimento, muitas vezes cosmológico.
A noção de mito, porém, não se esgota na ideia de narrativa sobrenatural. “Há autores que pensam o mito como um espelho do nosso inconsciente”, acrescenta Marcos, evocando Carl Jung e seu conceito de arquétipos — esses símbolos primordiais que habitam a constituição da nossa psique. Nesse sentido, o mito também funciona como uma metáfora para eventos históricos, uma forma simbólica de contar como civilizações surgiram, se desenvolveram ou ruíram. O mito é, portanto, tanto memória coletiva quanto expressão subjetiva: ele estrutura o imaginário social ao mesmo tempo em que espelha nossas emoções mais profundas.
A essa altura da conversa, quando começo a me acomodar na ideia de que os mitos ficaram no passado — ou que hoje vivemos em tempos mais racionais —, o professor Marcos me desestabiliza com uma provocação: será que somos mesmo mais racionais agora? Ele recorda que houve, sim, um momento histórico em que se tentou construir uma cisão entre razão e irracionalidade. É nesse contexto que surge o “desencantamento do mundo”, expressão consagrada por Max Weber para descrever o processo moderno de esvaziamento simbólico da realidade. Mas, segundo ele, essa racionalidade que a modernidade tanto exalta é, em si, uma invenção — e uma invenção recente. “A modernidade foi uma invenção que se pautou justamente nessa racionalidade, mas Bruno Latour afirma no título e no conteúdo de um livro que jamais fomos modernos”, destaca Marcos, quebrando as minhas duas pernas.
Neste momento, sou eu quem acende o cigarro e começa a meditar sobre tudo o que tem passado pela minha cabeça desde que tive a ideia de escrever este texto. Uma ideia que, aos poucos, foi se transformando ao longo dos dias — e que, mesmo agora, enquanto estou sentada diante da minha escrivaninha, lutando contra o tempo para entregar um trabalho de faculdade que tem me tirado o sono, continua se redefinindo.
Então, pergunto se existe um roteiro simbólico que se repete quando figuras políticas são transformadas em mitos. Marcos responde que, embora talvez não haja um roteiro específico, é possível identificar algumas características comuns na construção dessas figuras ao longo da história. “Acredito que políticos se tornam mitos a partir dessa análise do mito como uma história fantástica que fala sobre um ente sobrenatural”, diz. Eles são elevados à condição de exceção, vistos como capazes de escapar às limitações da existência comum.
Apesar da complexidade que envolve a construção de um mito político, Marcos chama atenção para um ponto recorrente nesse processo: os momentos de crise. São nesses períodos de instabilidade que certas figuras são alçadas a uma posição quase mítica, pois passam a encarnar, para parte da população, o papel de salvador. “Geralmente, existe toda uma estrutura de forças que agem para que esse personagem histórico se torne mitológico. A gente percebe que sempre existe uma narrativa do herói que vai salvar o povo”, explica. A ideia encontra eco no pensamento de Raoul Girardet, citado por Marcos:
“em tempos de crise, existe uma efervescência de mitos na sociedade, que acontecem no âmbito do inconsciente — e qual o melhor cenário para surgirem heróis do que numa crise, onde pessoas precisam ser salvas?”
As crises institucionais como palco da mitologia política
A leitura que enxerga nos períodos de crise um terreno fértil para a emergência de figuras políticas mitificadas dialoga diretamente com o cenário que antecedeu a Revolução de 1930 — um momento em que o Brasil se via imerso em profundas instabilidades econômicas e políticas, e em que o descontentamento generalizado rapidamente se convertia em revolta. Foi isso o que descobri, com mais nuances, na conversa que tive com Francisco dias antes. Naquela tarde, enquanto ele falava, o cigarro já queimava pela metade e a luz amarelada começava a se render ao avanço da noite. Sem pressa, o historiador nos guiava de volta ao Brasil dos anos 1920, a um país em ebulição, prestes a romper com a ordem da Primeira República — ali estavam as raízes daquele ponto de virada na história brasileira.
“Então, do ponto de vista econômico, o Brasil estava em crise, especialmente os exportadores de café estavam morrendo de medo ali”, explica Francisco. “O Brasil era um país agrário e exportador de café. Cerca de 80% da renda brasileira, em um determinado momento, vinha do café. E, então, o café começa a passar por uma crise econômica devido à superprodução, vamos ter uma baixa de preço, esse era o contexto”.
Mas não era apenas a economia que fervia. No campo político, o cenário também era de instabilidade crescente. O descontentamento, longe de ser algo pontual, vinha se acumulando desde os primeiros anos da República e se tornava cada vez mais organizado — manifestado em levantes militares, na fundação de partidos de oposição e no esgotamento do modelo político vigente.
O pavio de 1930
A eleição de 1930 funcionou como um estopim. Marcada por fraudes — prática comum na Primeira República —, ela rompeu o pacto informal de alternância entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, que sustentava a chamada “política do café com leite”. Ao ignorar a vez dos mineiros e impor novamente um nome paulista, Júlio Prestes, a elite paulista desestabilizou o delicado equilíbrio entre as forças regionais. Esse gesto foi interpretado como traição por Minas, que então decide romper com São Paulo e apoiar a candidatura de Getúlio Vargas, político gaúcho que encarnava uma alternativa possível para os insatisfeitos.
A tensão, que já era alta, só aumentaria com o assassinato de João Pessoa, vice na chapa de Vargas. O crime teve enorme repercussão e acirrou ainda mais os ânimos, transformando o que antes era um descontentamento difuso em uma revolta aberta. Getúlio Vargas, até então governador do Rio Grande do Sul e candidato derrotado à presidência, passou a emergir como a figura capaz de reunir forças díspares — das oligarquias dissidentes aos militares revolucionários, muitos deles de esquerda, forjados nos levantes tenentistas da década anterior.
Mesmo sem contar inicialmente com força suficiente para desafiar diretamente o domínio paulista, Getúlio soube ocupar os espaços deixados pelas fraturas internas da Primeira República. Ao lado de líderes como João Alberto de Lins e Barros e Miguel Costa — ambos ex-integrantes da Coluna Prestes e nomes ligados ao socialismo —, ele costurou alianças improváveis que uniram, sob a bandeira da Aliança Liberal, diferentes setores sociais e ideológicos. Em São Paulo, a nomeação desses militares gerou reações que hoje soam paradoxais: oligarquias conservadoras defendendo a necessidade de um civil contra o avanço de um governo que parecia querer se manter ali para sempre.
Enquanto isso, Vargas ganhava as ruas. A marcha simbólica do trem que partiu do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro marcou a consolidação de sua popularidade. A cada parada, o movimento crescia — apoiado por multidões que viam ali uma chance de romper com a velha ordem. Embora resistisse inicialmente à solução de força, o próprio Getúlio acabou assumindo o papel de liderança política e estratégica do levante. Convidou Luís Carlos Prestes, então exilado, a voltar ao país e coordenar o comando militar da revolução. Em pouco tempo, aquele que parecia apenas um nome de conciliação regional havia se tornado a principal cabeça da organização insurrecional — e, por consequência, do novo projeto de país que surgia com a Revolução de 1930.
Era uma segunda-feira, 3 de novembro, quando Getúlio Vargas tornou-se presidente do Brasil, dando início ao Governo Provisório que se estenderia até 1934. A partir desse momento, iniciam-se as reformas constitucionais e políticas que dariam ao movimento o nome de “revolução” — não somente pela queda do regime anterior, mas pela tentativa de refundar o país a partir de novas bases sociais e institucionais.
Revolução ou golpe de Estado?
Para alguns, foi uma revolução; para outros, um golpe de Estado; para todos, o início de um período que transformou o político interiorano dos pampas no maior mito político do Brasil moderno — nome de mais de duas mil ruas, pai simbólico de uma era. Enquanto Marcos reflete sobre como o discurso político se constrói sobre arquétipos, heróis e mitos fundadores, Francisco lembra que a mitologia em torno de Vargas não nasceu do acaso nem de uma boa campanha publicitária. “Essa ideia de ‘pai dos trabalhadores’ não existia em 1930”, afirma. “Ela é resultado de décadas e décadas de promulgação de legislação trabalhista”.
É nessa materialidade que o mito encontra seu alicerce. A imagem de Vargas como defensor do povo foi se moldando ao longo dos anos, sustentada por ações concretas: numerosas leis trabalhistas, proteção ao operariado, institucionalização dos direitos sociais. Por mais volúvel ou contraditória que tenha sido sua trajetória ideológica, Getúlio Vargas fez acontecer — e é isso, talvez, que o mantém ainda hoje como uma figura suspensa entre o político e o eterno.
Isadora França
Estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Interessa-se por narrativas que misturam literatura, política e história. Cultiva, com carinho e inquietação, uma paixão antiga pela filosofia, um amor crescente pelo fotojornalismo — e um comprometimento inabalável com pugs. Ainda não aprendeu a escrever sem sentir muito.
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