O dia 07 de outubro de 2023 alterou vários aspectos ao redor do globo, inclusive, a interação social no meu aniversário daquele ano. Concedam-me, por favor, a oportunidade de detalhar melhor. Hamas atacou o Estado de Israel. Neste dia, uma nova camada foi introduzida na história da ocupação na Palestina. Você, leitor, deve estar se questionando: qual é a relação disso com meu aniversário? O assunto foi debatido durante um bom tempo entre os meus amigos naquele almoço comemorativo. Após esses episódios, tratei de tentar entender, minimamente, a ponta do iceberg de um tópico denso o qual perdura desde o século passado. Li Joe Sacco, poemas palestinos e,agora, deparo-me com o livro Gaza está em toda parte da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho, publicado pela editora Bazar do Tempo.
Alexandra Lucas Coelho tem experiências na situação da Palestina. Cobriu, durante um bom tempo, a situação em Gaza e chegou a ir várias vezes ao local. O livro da jornalista é fruto desse trabalho, reúne uma espécie de crônicas sobre os territórios ocupados por Israel — com a sua última ida a Gaza, seis anos antes — e fotografias pós-7 de outubro. A autora questiona e desmistifica o status da Europa como um continente “civilizatório” e nos lembra, inclusive, do silêncio da União Europeia perante a devastação palestina e seu reconhecimento do Estado de Israel como uma democracia. O Hamas seria, então, fruto da apatia internacional:
O poder do Hamas nasce da ocupação. Mas também da falha da Autoridade Palestina perante o seu povo; da falha contínua dos regimes árabes perante os palestino; e da falha internacional perante o mais longo e obsceno status quo de um povo ocupado há décadas […] O Hamas é uma cria de toda gente, quando toda gente sabe que entre nós, os vivos, milhões de pessoas vivem num gueto há décadas, controladas por uma potência militar a que as democracias chamam de democracia.
Israel segue seu plano de exterminar o Hamas, porém, nesse caminho, pessoas inocentes pagam o preço e, segundo Coelho, essa atitude do estado israelita fortalece, ainda mais, o grupo palestino. Na verdade, Israel não se importa com a Palestina. Há uma certa apatia do lado judaico com o outro lado do muro. Não quero, de forma alguma, defender a morte de inocentes, porém temos de entender que “compreender essa violência não é justificá-la […]”, mas uma forma de superá-la.
A autora, ainda, traz uma provocação acerca do dia 07 de outubro: como é possível haver uma rave a 5km de um campo de concentração como Gaza? Por outro lado, não sejamos hipócritas, poderia ser um dos nossos raptados ou mortos na rave. Fiquemos, no entanto, com esse incômodo de luzes que piscam na pista de dança e, ao mesmo tempo, saber de que do outro lado, há ocupação:
“[…] metade de Israel acredita que o exército deve governar Gaza […] Vi israelenses ignorarem os palestinos ao longo de 22 anos, cada vez mais tragicamente. Só isso explica que tenha sido possível montar uma rave encostada a Gaza de 6 para 7 de outubro. A Festa Nova é uma espécie de buraco negro da história do Estado Judaico […] Só um país alienado pode gerar tamanha cegueira, tamanha surdez.”
Há um lamento, um trauma coletivo. O choro das mães que perderam seus filhos ecoa por um mundo que sabe do que está acontecendo, embora finja não saber, com um sorriso cínico no rosto. Como nos lembra a jornalista, este genocídio está sendo filmado e divulgado nas redes sociais. A escritora nos recorda, a todo momento, que os direitos humanos — dos quais a Europa se orgulha de ser guardiã — estão sendo brutalmente violados. A mesma Europa que é herdeira de guetos, bombas, cercos e massacres. Após o Holocausto, disse-se “nunca mais”, mas falhou-se miseravelmente. A veemência do livro está, justamente, no mosaico de textos que não se omitem. Sua crônica, além de criticar a comunidade internacional, clama por urgência. O horror na Palestina é visível, no entanto, nada é feito. Assim, a indiferença torna-se também uma forma de violência.
“A inação da Europa é uma ação contra a sua própria palavra.”
Além disso, pedir fim do genocídio em Gaza não é antissemitismo, longe disso, “honrar a memória do Holocausto é travar a mortandade em Gaza agora.” Vários intelectuais têm debatido em cima desse argumento, como é o caso de Omer Bartov, israelense e professor de Estudo sobre o Holocausto na Universidade de Brown. Para a BBC Brasil, ele argumenta que a ação de Israel “[…] é o principal fator desencadeador do aumento do antissemetismo no mundo.” O pesquisador, ainda, não hesita ao chamar a situação palestina de genocídio.
Se há um aumento do antissemitismo no mundo, também há adoradores do Estado de Israel. Aqui, no Brasil, uma parcela significativa de cristãos exibe com orgulho a bandeira do país. Em alguns domingos, chegam a desfilar com ela pelas ruas. Alguns viajam até a chamada Terra Santa. Coelho observa que grande parte da economia israelense é sustentada pelo turismo cristão. Ela também critica a superficialidade de reportagens que lamentam a ausência de turistas em Jerusalém, ignorando que os palestinos, que antes mal conseguiam sobreviver, agora vivem do nada. A Palestina também é Terra Santa. O que estão fazendo com ela?
O que significa ler os Evangelhos em Jerusalém ocupada?
O livro de Alexandra Lucas Coelho faz parte de obras as quais classifico como “leitura desconfortável”. Sim, é para ficar assombrado e assustado. Gaza está em toda parte não é apenas um título, mas um alerta: o genocídio transmitido em tempo real nos convoca, desestabiliza e exige posicionamento. Enquanto lia o livro de Coelho, tive a oportunidade de conversar com um poeta palestino. Ele mal consegue escrever porque está de estômago vazio. Alexandra Lucas Coelho pede urgência e humanidade porque, assim como o poeta, milhares de pessoas estão em estado crítico de fome. A Palestina está sendo sistematicamente destruída. E há várias formas de matar.
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