O espetáculo A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas) nos questiona: o que significa recuperar a liberdade? Seis pessoas que passaram pelo sistema prisional brasileiro têm suas trajetórias entrelaçadas. Diante das dificuldades de reinserção social e reconstrução da própria vida, cada uma delas, a seu modo, tenta encontrar uma saída. As marcas do período atrás das grades permanecem na memória, no corpo e nos afetos. Exu, o orixá das encruzilhadas e destrancador dos caminhos, aparece como uma presença provocativa ao despertar naqueles sujeitos a fome de novos começos e a avidez por dignidade.
A dramaturgia de Dione Carlos em A boca que tudo come tem fome se destaca pela fusão entre ancestralidade afro-brasileira e denúncia social, utilizando Exu como eixo simbólico que articula as narrativas dos egressos do sistema prisional. A obra rompe com estruturas convencionais ao adotar uma tessitura pós-dramática, onde histórias se entrelaçam como caminhos em uma encruzilhada, reforçando a ideia de que a liberdade é um processo cheio de obstáculos e recomeços.
A figura de Exu, como mediador e provocador, não só conecta o sagrado ao humano, mas também expõe, de maneira sutil e potente, os estigmas sociais que perseguem quem busca reinserção. Ao mesclar relatos pessoais com elementos ritualísticos, Carlos cria um incômodo reflexivo no espectador, desafiando estereótipos e convidando à empatia, ao mesmo tempo em que questiona as estruturas de poder que perpetuam ciclos de exclusão. A peça, assim, vai além da representação — torna-se um espaço de confronto e ressignificação da dignidade.
O elenco de A boca que tudo come tem fome, composto por Cristiano Belarmino, Dalma Régia, Davi Guimarães, Jucimara Canteiro, Klavy Costa e Walmir Bess, entrega performances marcantes ao dar vida às histórias de egressos do sistema prisional, imprimindo autenticidade e profundidade às suas trajetórias de luta e reinvenção. Cada ator/atriz constrói seu personagem com uma carga emocional palpável, transmitindo as cicatrizes físicas e afetivas do encarceramento, ao mesmo tempo em que revela a urgência por dignidade e recomeço.
No entanto, embora o trabalho individual seja consistente, há uma certa desconexão nas cenas coletivas, nas quais as coreografias e interações poderiam ganhar maior sintonia e impacto, potencializando a força ritualística proposta pela dramaturgia. Ainda assim, o conjunto do elenco consegue envolver o público, provocando reflexão e empatia ao expor as contradições e desafios enfrentados por quem busca reconstruir uma vida após a prisão.
A direção técnica de A boca que tudo come tem fome se destaca pela integração harmoniosa entre elementos sonoros, visuais e espaciais, criando uma atmosfera imersiva que amplifica o impacto da narrativa. A direção musical de Alisson Amador, com sua orquestração de violinos, violoncelos e percussão, não apenas acompanha, mas intensifica o tom dramático da peça, reforçando a tensão e a emotividade das cenas.
A cenografia de Telumi Hellen, com seu espelho d’água, é um acerto brilhante: além de gerar imagens poéticas e simbólicas — refletindo tanto a fragilidade quanto a possibilidade de renovação —, ela funciona como um elemento narrativo, ampliando a angústia e a busca das personagens. A iluminação de Miguel Rocha complementa essa estética, oscilando entre o real e o onírico, reforçando a dualidade entre o cárcere e a liberdade, o sagrado e o humano. Juntos, esses elementos técnicos não só sustentam a proposta pós-dramática da peça, mas também elevam sua potência política e ritualística, transformando o palco em um espaço de ressignificação coletiva.
A direção de Miguel Rocha demonstra um olhar sensível e preciso ao equilibrar a potência política da dramaturgia com uma estética ritualística, criando um espetáculo que é tanto reflexivo quanto visceral. Rocha consegue harmonizar os elementos cênicos sem que nenhum sobreponha o outro, mantendo o foco na força narrativa e simbólica da peça. Sua abordagem valoriza a ancestralidade afro-brasileira e as histórias dos egressos do sistema prisional, transformando o palco em um espaço de confronto e ressignificação. Embora algumas cenas coletivas pudessem ganhar maior sintonia, a direção mantém uma coesão geral, articulando performances individuais intensas com uma atmosfera imersiva que amplifica o impacto emocional e social da obra.
A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas) se consolida como uma experiência teatral necessária e impactante, que transcende o palco para se tornar um convite à reflexão sobre justiça, liberdade e humanidade. A dramaturgia afiada de Dione Carlos, somada à direção sensível de Miguel Rocha e às performances intensas do elenco, cria um mosaico de vozes que expõem as feridas do sistema prisional, mas também celebram a resistência e a busca por recomeços.
Apesar de pequenas desconexões em cenas coletivas, a força ritualística da encenação — potencializada pela trilha sonora envolvente, pela cenografia poética e pela iluminação onírica — garante um espetáculo que ecoa muito além do teatro. Mais do que denúncia, a peça é um ato político de resgate da dignidade, onde Exu abre não somente os caminhos das personagens, mas também os nossos, desafiando-nos a encarar os dilemas da reinserção social. Um trabalho que, em sua potência estética e ética, deixa claro que a verdadeira liberdade ainda é uma encruzilhada a ser desvendada.
FICHA TÉCNICA – Concepção geral e encenação:Miguel Rocha. Dramaturgia: Dione Carlos. Elenco:Cristiano Belarmino,Dalma Régia, Davi Guimarães, Jucimara Canteiro, Klavy Costa e Walmir Bess. Música original e direção musical: Alisson Amador. Música “A Benção”: Júlia Tizumba. Música em cena: Alisson Amador, Amanda Abá, Denise Oliveira e Nicoli Martins. Cenografia: Telumi Hellen. Assistente de cenografia: Nicole Kouts. Figurino:Samara Costa. Assistência de figurino: Clara Njambela. Iluminação: Miguel Rocha. Provocação vocal:Alisson Amador, Edileuza Ribeiro e Isabel Setti. Direção de movimento:Erika Moura e Miguel Rocha. Provocação corporal: Erika Moura. Oficinas de dança: Ana Flor de Carvalho, Diogo Granato, Janette Santiago e Marina Caron. Criações coreográficas: O coletivo, Erika Moura, Diogo Granato e Janette Santiago. Provocação teórico-cênica e mediação do ciclo de debates:Maria Fernanda Vomero. Estudos em teatro épico, performance e dança: Alexandre Mate, Murilo Gaulês e Sayonara Pereira. Operação de luz: Gabriel Rodrigues. Operação de som: Lucas Bressanin. Microfonação: Katheleen Costa. Cenotécnia: César Renzi. Convidados do ciclo de debates:Fábio Pereira, Dexter, Tempestade e Vicente Concílio. Comentadores:Bruno Paes Manso e Salloma Salomão. Assessoria de imprensa: Eliane Verbena. Coordenação de comunicação: Luiz Fernando Ferreira. Assistência de comunicação: João Teodoro Junior. Fotografia: José de Holanda. Registros do processo de criação: João Guimarães. Edição de textos para o programa da peça: Maria Fernanda Vomero. Direção de produção: Dalma Régia. Produção executiva: Álex Mendes e Miguel Rocha. Idealização:Companhia de Teatro Heliópolis. Realização: Sesc São Paulo.
SERVIÇOS:
Espetáculo: A Boca que Tudo Come Tem Fome (Do Cárcere às Ruas)
Com Companhia de Teatro Heliópolis
Estreia: 10 de julho de 2025 – Quinta, às 20h
Temporada: 10 de julho a 3 de agosto – Quinta a sábado, às 20h, e domingo, ás 18h
Ingressos: R$ 60 (inteira) | R$ 30 (meia) | R$ 18 (Credencial Sesc)
Vendas online: A partir de 1/7 pelo site sescsp.org.br/14bis e 2/7 presencialmente nas bilheterias das unidades do Sesc São Paulo
Classificação: 14 anos. Duração: 135 minutos. Gênero: Experimental.
Sesc 14 Bis – Teatro Raul Cortez
Local: Teatro Raul Cortez
Rua Dr. Plínio Barreto, 285 – Bela Vista. São Paulo/SP.
Capacidade: 523 lugares. Acessibilidade: Sim.