“Amor e Medo” (1974) de José Rubens Siqueira, que teve sua reestreia nesta quarta-feira (20 de março 2025) exibida na Cinemateca Brasileira em São Paulo, à primeira vista pode ser interpretado como uma autobiografia, já que o longa apresenta recortes de filmes feitos pelo próprio artista (“Ocorrência 642/67” e “Clepsuzana”), entre outras características marcantes que tocam a linguagem diarista.
Porém, de acordo com o site oficial de José, o filme lançado em 18 de novembro de 1974 é mais que uma autobiografia precoce; é um registro do desencanto e desalento da geração que viveu durante a ditadura militar iniciada em 1964. O filme, que originalmente se chamava “A Passagem das Horas”, inspirado no poema de Fernando Pessoa, ficou inconcluso durante os anos 60, mas felizmente foi concluído em 1974, recebendo seu título definitivo de um ensaio de mesmo nome, escrito por Mário de Andrade, em 1931.
A trama acompanha um cineasta (José Wilker) e sua esposa Olívia (Irene Stefânia), que é professora e pintora. O casal se muda do Rio de Janeiro para uma casa de campo com seu filho (Luiz Fernando Ianelli), a princípio diagnosticado com autismo “voluntário” e, portanto, emudecido.
A começar pela escolha de trechos poéticos que guiam a narrativa, incluindo declamações de grandes nomes da poesia, que conduzem o espectador pela subjetividade das personagens e de si mesmo. Casimiro de Abreu abre o longa com o poema homônimo (e que provavelmente foi também inspiração para o ensaio de Mário de Andrade): “Tenho medo de mim, de ti, de tudo, / Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes. / Das folhas secas, do chorar das fontes, / Das horas longas a correr velozes (…)”
Logo de cara podemos especular que não se trata de um filme fácil. As imagens que correm na tela introduzem o jorro inicial da arte nacional que tenta, a todo custo, se desvincular do processo de modernização que o Brasil enfrentava. Entre a poesia visual – marcada por longas pausas entre cortes pictóricos – e a estética caótica e ansiosa de cortes rápidos com notícias de jornais, fragmentos musicais, invasões culturais e políticas, fazem jus às características dos primórdios do Cinema de Invenção, Cinema Marginal e Cinema Ensaístico.
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Podemos vislumbrar as referências de Rubens Siqueira, que cita indiretamente Hitler 3º Mundo (José Agrippino de Paula, 1968), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e Sem Essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1970).
Quase numa simulação imagética do que escreve Mário de Andrade, a ansiedade e a angústia existencial de um Brasil que, apesar de sua imensa diversidade cultural e histórica, ainda buscava se definir enquanto nação, se construindo a partir de cacos, saltos e solavancos, o filme de Rubens Siqueira nos apresenta as mesmas nuances a partir de um corpo sensível e humano. Apesar de se apresentar como uma história de amor, o longa é guiado pelas metáforas que envolvem as relações pessoais que compõem o amor e o medo.
O medo ali na tela não é apenas pessoal, é também coletivo, aponta para a dúvida sobre o futuro do país e da nossa cultura, e sendo o personagem principal um cineasta, podemos relacionar estes abismos a partir dos olhos criativos que o acompanham nas mudanças abruptas de linguagem e que, claro, constroem uma própria variando inúmeras vezes entre passado, presente e imaginação a partir de mesclas de imagens preto e branco, coloridas e sépias, e a inserção de animações, por exemplo.
Com duração de 78 minutos, o longa parece se atualizar na contemporaneidade em seu argumento. A escolha do figurino, verde e amarelo, relembram um medo recente que você sabe muito bem qual é. O filme construído através de estilhaços e da mescla de linguagens também reflete a psique moderna, que luta na corda bamba entre compreender o amor como o algo que impulsiona e conecta nossos ideais, mas que se defronta ano após ano com a racionalidade marcada pelo medo existencial, pela dúvida e pela incerteza sobre o futuro – hoje, global.
Além disso, podemos trazer ainda mais o filme para os prismas do Brasil 2020, quando Rubens Siqueira nos joga frente à solidão do Homem – que hoje se relaciona de forma mais potente e palpável, já que temos acompanhado a crescente psicológica do bloqueio emocional masculino como resposta a conexões autênticas, reproduzindo o isolamento emocional derivado do medo e da vergonha, que coexistem com o desejo de ser visto como auto suficiente e inabalável, literalmente trancafiando o amor. Essa relação fica clara, principalmente nas cenas finais.
Antes, preciso destacar as três imagens poéticas centrais que José Rubens escolhe trabalhar durante a trama: Olívia, a mulher, é simbolicamente o elo de segurança e amparo do relacionamento, da família e da casa, surgindo no longa como a própria arte – no caso o cinema – e entoando a voz da consciência quando diz: “Você encheu 58 páginas de ideias que não interessam nada (…) Você pode berrar uma verdade transcendental para uma árvore, e o máximo que ela vai conseguir chegar é sacudir suas folhas ao vento (…) Talvez se você procurar bem, você encontre sementes novas para plantar. Mas você vai ter de sujar muito as mãos (…)”.
O filho, mudo e ativo, como a metáfora do Brasil moderno, distante e incomunicável, e ainda assim em busca de voz e expressão, que justamente planta uma árvore e a observa crescer todos os dias; e o jovem vizinho que aparece em desaviso durante as noites – sempre encarando Olívia e provocando a raiva do cineasta – como a própria manifestação do que ficou para trás, diretamente ligado a uma idealização de resistência, superação e ação, que nas cenas do filme se apresentam como ameaça ao ego.
As cenas do imaginário do cineasta saltam à tela em filmagens alaranjadas, contrastando vontade e realidade do personagem que parece fugir de si mesmo através de artimanhas artísticas. Essas rupturas ficam bastante evidentes quando o artista utiliza, por exemplo, passagens de “A Hora do Lobo” (Ingmar Bergman) para enfatizar a crise que come a personagem do cineasta, que após declarar “Aqui jaz um jovem intelectual brasileiro, causa mortis: inanição.”, e escutar sua mulher proferir a inutilidade de sua produção, se implica na destruição do passado, literalmente queimando registros e diários, lendo cada trecho do que irá se apagar. Dentro dos escombros de livros queimados, inúmeras vezes o mapa do Brasil aparece em destaque, assim como notícias sobre a situação do país, algumas imagens de Hiroshima e outras clássicas da cultura norte-americana – como o pôster do Batman que queima inteiro diante de nossos olhos.
O amor de Mário de Andrade, que é o amor pela arte, pela identidade nacional e pela modernidade brasileira, é captado como jogo poético por José Rubens dentro da metáfora do relacionamento amoroso. A mulher, como representação da arte, vestida de branco e amarelo, é trancada dentro do quarto e sentenciada a morrer de fome, clamando por isso nas imagens que se tornam alaranjadas na imaginação, enquanto o cineasta rasga o passado e escutamos sua voz, parando de quando em quando para olhar para nós, espectadores.
O medo que acompanha essa transformação é o medo de perder a essência cultural e o medo das incertezas que vêm com as mudanças, muito bem representado pela imagem do filho, que finalmente fala, batendo à porta da mãe, e que depois se vai, montando num cavalo ao som de tambores e música afro, finalmente se transformando nas ilustrações que seguiram compondo a filmografia do artista.