Como pandemia atravessou os corpos minoritários, em especial mulheres? Talvez essa seja a grande pergunta de Entre Muros e Sussurros
Chico Buarque, em um dos seus maiores clássicos, Roda Viva, escreveu a frase que mais marca a passagem do tempo que é atravessada por essa avalanche que não sabemos se é destino ou acaso: “mas eis que chega a roda viva e carrega o (…) pra lá…” Assim são as coisas da vida, idas e vindas desconexas que se encontram, se confrontam, se contrapõem.
Porém, os sofrimentos das desigualdades, as tristezas, as violências e as agruras da vida não são espalhadas de forma igualitária. Ao contrário, existem grupos minoritários que, como sabemos, sofrem mais impactos que outros quando a roda viva chega passando e levando tudo para lá. Talvez esse seja o ponto mais marcante do livro “Entre Muros e Sussurros”, de Lindjane Pereira.
“Entre Muros e Sussurros” é uma coletânea de 12 contos que, aparentemente, são permeados por conteúdos banais de uma vida cotidiana. No entanto, escondem muito mais por trás de sua pretensa simplicidade: um imenso relato no qual diversas vidas são atravessadas pela pandemia de Covid-19.
O interessante do livro é que Lindjane não parece estar realmente interessada na pandemia em si, mas em como um fator externo que desestabiliza as relações sociais e obriga a todos a se reconfiguraram nas suas relações, dando a ver uma série de marcas que, muitas vezes, ficam invisíveis durante a chamada “vida normal”.
Assim, Lindjane usa a pandemia como uma espécie de alegoria: evento fora da trajetória da vida, para tratar de temas contemporâneos muito importantes, muitos deles, inclusive, retratando assuntos que dizem respeito à figura feminina:
“Nós, mulheres, somos moluscos numa bela concha. Sempre a postos com um sorriso no rosto.”
É o caso, por exemplo, do primeiro conto do qual foi extraída a frase acima. Trata-se de “Asfixia”, em que uma mulher relata justamente a sensação de “asfixia” que estar confinada com seu marido e filhos lhe dá. Idealmente, aquela ideia parecia maravilhosa, afinal, ela diz que vislumbrou “a oportunidade de me tornar a imagem inatingível” de si mesma”:
“Ver meus filhos acordados; conversar com o meu marido; ler um livro; assistir um filme. Dizem que mulheres modernas são plenamente capazes de fazer tudo isso”.
Porém, a realidade é justamente o oposto disso, afinal ela descobre a sobrecarga de trabalho que recai sobre a mulher diante do trabalho de casa, não remunerado, e do trabalho da rua, em sua pretensa satisfação pessoal e salarial. Em determinado momento, ela relata como passou a contar o tempo pelas rugas de seu rosto:
“As ciganas veem o futuro nas linhas das palmas das mãos. Eu vejo o meu passado lendo a minha testa marcada.”
Um dos meus contos preferidos do livro é “Uma Folha ao Vento” que, em uma estrutura arrojada, retrata a vida de Beatriz (será a da canção de Chico?), uma mulher que trabalha como artista em seu ateliê e, um dia, conhece seu marido médico em um caso furtivo da vida. Ao vê-lo triste numa praça, tocou seu ombro e disse: “a vida acontece. Sempre penso nisso quando alguém está triste”.
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Porém, como uma “folha ao vento”, evento que ela adorava observar e vivia em si também, um dia resolveu abandonar seu marido deixando apenas um bilhete. Reproduzindo uma dor que não sabia de onde vinha, produzia obras em que as personagens mulheres tinham olhares perdidos:
“As cores estão todas submersas. Eu mergulho fundo para resgatá-las.”
E tal como a Pietá de Michelangelo, obra que Lindjane cita juntamente com alguns versos de Drummond, permanecia na busca de ser amparada em braços que, por fim, dariam sentido à sua existência. Trata-se de um belíssimo conto, com cortes e passagens temporais que levam à arte da escrita breve a uma série de limites de entendimento que tornam toda a experiência ainda mais interessante.
Outro conto bastante interessante é “Ultrapassado”, que retrata a história de Raimundo, “um professor à moda antiga, daqueles avessos à tecnologia e a métodos inovadores de ensino”. Para ele, tudo isso atrapalhava o uso “da máquina-mor, o cérebro-humano”.
Raimundo, porém, como todos os professores de nosso país, passou a ter que dar aulas remotas com a ajuda de sua esposa Dona Glorinha. A tecnologia, no entanto, virou um entrave que lhe teria que descer goela abaixo.
Lindjane Pereira, porém, faz uso do conto não apenas para retratar essa relação entre professores, alunos e a tecnologia em meio à pandemia, mas principalmente aquilo que podemos chamar de “racismo tecnológico”, ou seja, a ideia de que as desigualdades atravessam diferentemente classes e raças sociais:
“O problema vencido não é guerra ganha. Naquele instante, o professor não tinha se dado conta que pisava num campo minado e de que aprender a usar o computador era o menor dos seus desafios.”
Diante dessas diferenças, o professor promove ações individuais e coletivas de garantia de acesso a computadores, notebooks e todas as ferramentas necessárias para que os alunos pudessem acompanhar a formação.
É com essa preocupação de entender como a vida é feita “Entre Muros” – ou seja, nos limites que a vida impõe e os percalços sociais, políticos e econômicos que o capitalismo predatório submete os sujeitos – e os sussurros, nossa possibilidade de falar diante dessas violências que o livro acontece.
A literatura, no fundo, é isso: um grito para todos os lugares, mas que chega às pessoas como sussurros, como mensagens, avisos e alertas ao pé do ouvido e que, aos poucos, vai transformando suas vidas. Ler os contos de Lindjane Pereira é mergulhar, entender e espalhar um pouco disso.