Com mais de 60 livros publicados, entre crônicas, ensaios e poesia, o escritor mineiro Affonso Romano de Sant’Anna (1937-2025) destacou-se como um dos nomes expressivos e atuantes da literatura brasileira. Ele faleceu este mês aos 87 anos, pouco tempo após a morte de sua esposa Marina Colasanti, também escritora.
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Estão entre alguns títulos do autor: Que país é este? (1980), O lado esquerdo do meu peito (1992), Intervalo Amoroso (1998), Textamento (1999), Tempo de Delicadeza (2007), Como Andar no Labirinto (2012), entre outros. Em 2006, venceu o Prêmio Jabuti de Poesia com o livro Vestígios (2005).
“[…] foi em 1980, ainda em plena ditadura, que publicou o mais candente e contundente inventário poético de nossa geração, carregando embora nos tons escuros. Inspirando-se na pergunta retórica de um político da ditadura, Affonso Romano publicou pela Civilização Brasileira- Que país é este? Publicado antes em página inteira do Jornal do Brasil, o poema foi um êxito instantâneo. Em tempo sem blogs e twitters, ele foi transformado em pôster e pregado nas paredes Brasil afora” (CARVALHO, 2011, p. 4).
Sua escrita é marcada pela reflexão crítica, porém não se restringiu as temáticas sociais e políticas. Costumava abordar, tanto nos poemas quanto nas crônicas, diversos temas como o amor, a desilusão, a morte, entre outros. Ao longo da carreira, colaborou para diversos veículos como o Jornal do Brasil, substituindo a vaga de cronista de Carlos Drummond de Andrade; além de O Globo, Estado de Minas e Correio Braziliense.
Ainda muito jovem, começou a trabalhar para a imprensa como forma de custear os estudos. Em 1961, formou-se em Letras Neolatinas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UMG, atual Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No início de sua vida literária, em 1963, foi um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em Belo Horizonte. Participou, em 1968, como bolsista do International Writing Program, nos EUA, programa voltado para jovens escritores de todo o mundo. Sua tese de doutorado, de 1969, teve como investigação a poética de Carlos Drummond de Andrade.
Durante décadas atuou em universidades brasileiras e estrangeiras, sendo um dos idealizadores do curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira na PUC-Rio e diretor do Departamento de Letras e Artes, de 1973 a 1976; mesma época que organizou a Expoesia, série de encontros nacionais de Literatura. Em 1991, criou a Poesia Sempre, revista que divulgou a poesia brasileira no exterior.
Além da vasta produção literária, contribuiu com ações de popularização e democratização da leitura no país. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), durante os anos 1990 a 1996, modernizando a instituição com a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas e a implementação de diversos programas como o Programa de Promoção da Leitura (Proler), que desenvolveu atividades em 300 municípios e chegou a ter 33 mil voluntários com o objetivo de tornar a leitura acessível à população. Também presidiu o Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América-Latina e no Caribe (CERLALC).
Reunimos alguns poemas. Confira:
Assombros
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
Carta aos mortos
Amigos, nada mudou
em essência.
Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há recordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.
Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.
Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.
Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.
Nada mudou em essência.
Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração, insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.
Os desaparecidos
I
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricô ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
-mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até a primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes esvaneciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, rarefeitos, constatar no além,
como os pescadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
-desapareciam.
II
Se fosse ao tempo da Bíblia, eu diria
que carros de fogo arrebatavam os mais puros
em mística euforia. Não era. É ironia.
E os que estavam perto, em pânico, fingiam
que não viam. Se abstraíam.
Continuavam seu baralho a conversar demências
com o ausente, como se ele estivesse ali sorrindo
com suas roupas e dentes.
Em toda família à mesa havia
uma cadeira vazia, a qual se dirigiam.
Servia-se comida fria ao extinguido parente
e isto alimentava ficções
-nas salas e mentes
enquanto no palácio, remorsos vivos boiavam
-na sopa do presidente.
As flores olhando a cena, não compreendiam.
Indagavam dos pássaros, que emudeciam.
As janelas das casas, mal podiam crer
-no que viam.
As pedras, no entanto,
gravavam os nomes dos fantasmas
pois sabiam que quando chegasse a hora
por serem pedras, falariam.
O desaparecido é como um rio:
-se tem nascente, tem foz.
Se teve corpo, tem ou terá voz.
Não há verme que em sua fome
roa totalmente um nome. O nome
habita as vísceras da fera
Como a vítima corrói o algoz.
III
E surgiam sinais precisos
de que os desaparecidos, cansados
de desaparecerem vivos
iam aparecer mesmo mortos
florescendo com seus corpos
a primavera de ossos.
Brotavam troncos de árvores,
rios, insetos e nuvens em cujo porte se viam
vestígios dos que sumiam.
Os desaparecidos, enfim,
amadureciam sua morte.
Desponta um dia uma tíbia
na crosta fria dos dias
e no subsolo da história
-coberto por duras botas,
faz-se amarga arqueologia.
A natureza, como a história,
segrega memória e vida
e cedo ou tarde desova
a verdade sobre a aurora.
Não há cova funda
que sepulte
-a rasa covardia.
Não há túmulo que oculte
os frutos da rebeldia.
Cai um dia em desgraça
a mais torpe ditadura
quando os vivos saem à praça
e os mortos da sepultura.
Arte final
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
– quem toma uma por outra
confunde e mente.
Separação
Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.
Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.
No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.
O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.
Despedidas
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
Silêncio amoroso 1
Deixa que eu te ame em silêncio.
Não pergunte, não se explique,
Deixe que nossas línguas se toquem,
e as bocas e a pele falem seus líquidos desejos.
Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se amor e vida
fossem um discurso
de impronunciáveis emoções.
Silêncio Amoroso 2
Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo,
pode construir. É um modo
denso/tenso
de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.
Amar a Morte
Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.
Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente. Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.
Reflexivo
O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.
Objetos do morto
Os objetos sobrevivem ao morto:
os sapatos,
o relógio,
os óculos
sobrevivem
ao corpo
e solitários restam
sem conforto.
Alguns deles, como os livros,
Ficam com o destino torto.
Parecem filhos deserdados
ou folhas secas no horto.
As jóias perdem o brilho
embora em outro rosto.
Não deveriam
deixar pelo mundo
espalhados
os objetos órfãos do morto,
pois eles são, na verdade, fragmentos
de um corpo.
Catando os Cacos do Caos
Catar os cacos do caos
como quem cata no deserto
o cacto
– como se fosse flor.
Catar os restos e ossos
da utopia
como de porta em porta
o lixeiro apanha
detritos da festa fria
e pobre no crepúsculo
se aquece na fogueira erguida
com os destroços do dia.
Catar a verdade contida
em cada concha de mão,
como o mendigo cata as pulgas
no pêlo
– do dia cão.
Recortar o sentido
como o alfaiate-artista,
costurá-lo pelo avesso
com a inconsútil emenda
à vista.
Como o arqueólogo
reunir os fragmentos,
como se ao vento
se pudessem pedir as flores
despetaladas no tempo.
Catar os cacos de Dionisio
e Baco, no mosaico antigo
e no copo seco erguido
beber o vinho
ou sangue vertido.
Catar os cacos de Orfeu partido
pela paixão das bacantes
e com Prometeu refazer
o fígado
– como era antes.
Catar palavras cortantes
no rio do escuro instante
e descobrir nessas pedras
o brilho do diamante.
É um quebra-cabeça?
Então
de cabeça quebrada vamos
sobre a parede do nada
deixar gravada a emoção.
Cacos de mim
Cacos do não
Cacos do sim
Cacos do antes
Cacos do fim
Não é dentro
nem fora
embora seja dentro e fora
no nunca e a toda hora
que violento
o sentido nos deflora.
Catar os cacos
do presente e outrora
e enfrentar a noite
com o vitral da aurora.
Amor e Medo
Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.