Brasileiro faz fartura em qualquer lugar. Mais do que isso: enriquece o novo lar com nossa rica cultura, mescla que quase sempre dá origem a coisas incríveis que nos enchem de orgulho. Por exemplo: você sabia que a lavagem das escadarias de igrejas não é exclusiva do Senhor do Bonfim? E se eu te dissesse que na França há um evento como este, que une religião, cultura e, claro, Carnaval? A lavagem da Madeleine é o foco do documentário Madeleine à Paris.
Logo no começo, quando ainda estão rolando os créditos sobre uma tela preta, o narrador convida o público a liberar “o homem e a mulher que existem dentro de você”. Na sequência, Roberto Chaves, numa roupa bicolor, se põe a dançar ao lado de outros bailarinos para um público pouco efusivo – se fosse no Brasil, haveria gritos, aplausos e gente dançando junto.
Chaves chegou à Paris num 14 de julho, dia comemorativo da histórica Tomada da Bastilha, e já leva 31 anos no país da Torre Eiffel. Chegou como dançarino de um grupo, e ficou fazendo carreira solo. Vestido como “Augustine, a rainha das bolas”, demora quase uma hora para se arrumar no camarim e depois vai cumprimentar e receber os visitantes da casa de show auspiciosamente batizada de “Paraíso”: “bem-vindos ao Paraíso” é a fala dele.
Há mais de 20 anos, Roberto capitaneia uma atividade bem brasileira em solo parisiense: a lavagem da escadaria da igreja da Madeleine. Maria Madalena, nos conta um estudioso, é vista como pecadora porque estudava as Escrituras, num tempo no qual às mulheres era vetado qualquer estudo. Como os imigrantes, os negros e a população LGBTQ+, é uma excluída. Talvez por isso tenha tantos devotos.
De repente, o documentário se torna verdadeiramente internacional e Roberto volta para sua terra: Santo Amaro da Purificação na Bahia. Ele conta que sabia que tinha de sair da cidade e viajar o mundo para vencer na vida, mas não cortou suas raízes e ainda visita a família e os amigos sempre que tira férias. Amigos ilustres, mas não mostrados aqui: Chaves fala também de sua relação de pertencimento afetivo à família de Caetano Veloso e Maria Bethânia.
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Para quem não conhece, um padre francês narra a história da prática de lavar as escadas da igreja como ritual de purificação: uma vez que aos africanos não era permitida a entrada nos templos católicos, eles se limitavam a exercer a fé – fé imposta pelo colonizador é verdade, com supressão da religiosidade de seus locais de origem – com o ritual da lavagem. O padre francês, que chamou a lavagem de “mais um aspecto folclórico e cultural que uma celebração religiosa”, não está de todo certo: a origem da lavagem é ainda disputada, podendo ter sido criada ou na Idade Média, ou por um soldado que sobreviveu à Guerra do Paraguai, entre outras versões. Incertezas à parte, a mais famosa demonstração desta fé, a lavagem do Senhor do Bonfim, é patrimônio imaterial do Brasil desde 2013.
O sincretismo não foi abraçado pelo padre da igreja de Notre Dame, a prestigiosa primeira escolha de Roberto Chaves para fazer a lavagem em solo francês. Ele encontrou espaço na Madeleine, felizmente, e se divide bem entre catolicismo e candomblé. Chaves compara o sincretismo à sexualidade: é possível amar homens e mulheres, então é também possível ser devoto de mais de uma divindade. Polêmico? Em um país cada vez mais intolerante como o nosso está se tornando, talvez, mas dificilmente estes intolerantes assistiriam a este documentário para reclamar.
O que torna uma pessoa interessante a ponto de se fazer um documentário sobre ela? Sem dúvida, sua trajetória. Existem cerca de 90 mil brasileiros vivendo na França atualmente, então por que fazer um documentário justo sobre Roberto Chaves? Como ele, com certeza chegaram muitos “desavisados”, sem saber bem o idioma e buscando meios de melhorar a vida da família. Mas sua história de sucesso, atravessada por outra história, de devoção, o faz se destacar entre os 90 mil.
A diretora Liliane Mutti acompanhou Roberto Chaves durante seis anos para fazer Madeleine à Paris. Um de seus maiores trunfos foi ver as duas cidades, de origem e de residência, se complementando na história do artista, como destaca em entrevista para a Revista Fórum:
“Essas duas cidades aparentemente tão opostas, são coprotagonistas do longa. Viajar por Paris no olhar desse imigrante ou pelo interior da Bahia na sua volta às raízes, nos dá a dimensão de como o mundo é diverso e de que a arte carrega a potência de romper fronteiras e inventar novos mundos possíveis”
Entre Santo Amaro e Paris, o candomblé e o catolicismo, o masculino e o feminino: Roberto Chaves vive entre duos, que em sua experiência não são mutuamente excludentes. É mais um dos milhões de brasileiros que saiu do país para vencer, e venceu, sem nunca abandonar o orgulho de ser brasileiro.
Revisado: Gabriel Batista
Madeleine à Paris estreia nos cinemas em 06 de fevereiro. Confira o trailer:
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