50 anos depois de sua primeira versão, “Um grito parado no ar” ganha uma encenação poderosa pelo Teatro do Osso

Augusto chega para o ensaio, mas não encontra ninguém no teatro. É assim que começa “Um Grito Parado no Ar”, peça escrita em 1973, que apresenta uma companhia com dificuldades de montar um espetáculo há 10 dias da estreia. Agora, cinquenta anos depois, o Teatro do Osso afia esse texto de Gianfrancesco Guarnieri para encenar sua versão musical. 

Se o enredo de seis atores e atrizes ensaiando para uma estreia que nunca chega, em alusão à “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, se mantém intacto, a montagem do diretor Rogério Tarifa, em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, explora outras possibilidades. A começar pela abertura em que Guarnieri, Flávio Migliaccio e Abdias do Nascimento, entre outras figuras já falecidas, aparecem como fantasmas de uma ópera, personagens que agora vagam pelos tablados para lembrarem os artistas da verdadeira alma do ofício.  

O coro formado por Thiego Torres, Ísis Gonçalves, Wilma Elena, Rommani Carvalho, Nduduzo Siba, Sofia Lemos, Dan Nonato e Marcela Reis aparece em seguida, preenchendo o palco com o que era essencial na primeira montagem do texto, em 1973: as entrevistas de pessoas comuns, professores e demais trabalhadores. 

Foto: Mauricio Bertoni

A matéria-prima foi importada por Guarnieri como um modo de aproximar os artistas do povo, introjetando as duas classes do mesmo lado. Era preciso resgatar a linguagem crítica, a “vigência de uma arte racional, livre e voltada para o potencial transformador” do público; era urgente destrancar os atores, atrizes e demais artistas de uma realidade paralela. Naquela época, com a censura dos militares, o teatro deveria emergir ainda mais seu posicionamento político, transformando-se em trincheira tanto de cuidado social quanto de enfrentamento cultural. 

A dramaturgia de Jonathan Silva e Rogério Tarifa não dispensa o gravador – o item permanece em cena, talvez, como um tipo de tótem – mas usa o coro para amplificar outros gritos parados no ar do Brasil. Só para ficar em alguns exemplos, Nduduzo Siba é emigrante; Rommani Carvalho, uma mulher trans. Já Thiego Torres trabalha como pedreiro. E Marcela Reis esteve entre os estudantes secundaristas das manifestações de 2015.

O jogo com a montagem de 1973, feito por meio de fotos, vídeos e gravações exibidas durante o espetáculo, reforça o quanto a história do Brasil é um eterno ensaio. Nós estamos ensaiando o progresso, ensaiando reformas de base, direitos das mulheres, do povo preto, da comunidade LGBT. Só que nada disso, de fato, ganha uma estreia. Ao contrário, enquanto ensaiamos, a barbárie vai sendo encenada por todo canto.

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Rogério Tarifa, que dirige e interpreta Guarnieri, funde esses dois tempos – 1973 e 2025 – convocando o público ao palco porque o teatro não pode ser limitado por paredes, refletores ou figurinos. Em tempos extremos, é preciso instigar a platéia, fazê-la assumir posição no levante, pois a arte que não gera pulso, negociação ou até mesmo fúria, serve a quem?

Não por acaso, enquanto o público adentra o teatro antes da peça começar, somente o fantasma de Guarnieri e Dulce Muniz, presa política e uma das grandes atrizes do cenário brasileiro, estão em cena. A presença da artista transpõe o passado para o presente. Mas Dulce não é um espectro. Ela ainda está aqui, apesar da falta de espaço, das dificuldades financeiras, dos governos, da ascensão do totalitarismo, das ameaças… Aliás, que cena impactante Dulce tem no espetáculo quando é a sua vez de dar o depoimento!

Dulce Muniz. Foto Mauricio Bertoni

A direção musical é outro acerto de “Um Grito Parado no Ar”, justificando a versão musicada. “Jogo de Roda”, canção de Edu Lobo e Ruy Guerra, interpretada por Elis Regina, e “Mutirão do Amor”, de Jorge Aragão, por exemplo, asseguram o ritmo do espetáculo e tornam o bastidor que o público vê por meio dos laboratórios, improvisações, exercícios cênicos e depoimentos, algo mais próximo de si mesmo. No elenco, além de Dulce, destacam-se Oswaldo Ribeiro Acalêo, interpretando Eusébio, e Isadora Títto, fazendo a personagem Amanda. 

O final acontece ao som da música de Toquinho, de mesmo nome da obra de Guarnieri, e esconde um dado importante para quem não conhece o texto. Sônia Loureiro, que interpretava Nara, cantava a música-tema sozinha, à capela, e logo depois era acompanhada por todo o elenco. Esse hino de resistência foi mantido. Mas cinquenta anos depois, pode ser que os gritos parados no ar tenham mudado pouco. Ainda somos os mesmos, temos os mesmos sonhos e lutas. Não importa. Se o povo estiver livre para compôr a cena, o Brasil vai estrear. Nem que seja na marra. 

Ficha técnica

Direção: Rogério Tarifa
Dramaturgia: Jonathan Silva, Rogério Tarifa e Teatro do Osso
Direção de Atores: Rogério Tarifa e Luis André Cherubim
Texto original: “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri
Elenco: Maria Loverra, Rubens Consulini, Guilherme Carrasco, Isadora Títto e Oswaldo Ribeiro Acalêo
Atriz convidada: Dulce Muniz
Coro: Thiego Torres, Ísis Gonçalves, Wilma Elena, Rommani Carvalho, Nduduzo Siba, Sofia Lemos, Dan Nonato e Marcela Reis
Direção musical e treinamento vocal: William Guedes
Composições originais: Jonathan Silva
Músicos: Gabriel Moreira, Felipe Chacon e Ju Vieira
Direção de movimento e treinamento: Marilda Alface
Direção de Arte: Rogério Tarifa
Cenário: Rogério Tarifa e Diego Dac
Figurino: Juliana Bertolini
Desenho de som: Duda Gomes
Diretor de palco: Diego Dac
Técnico de Palco: Diego Leo
Técnico de som: Duda Gomes
VJ: Lui Cavalcante
Assistente de Produção: Julia Terron
Assistente figurino: VI Silva
Produção Executiva: Carolina Henriques
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli
Fotos: Mauricio Bertolin e Cacá Bernardes
Registro em vídeo e teaser: Carolina Romano
Designer gráfico: Fábio Vieira
Ilustração: Elifas Andreato
Realização: Teatro do Osso
Produção: Jessica Rodrigues Produções Artísticas
Direção de Produção: Jessica Rodrigues

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