“Amor é um, sexo é dois”, disse Rita Lee em uma de suas canções mais célebres, feita a partir de crônica escrita por Arnaldo Jabor. O amor é tema recorrente na literatura desde os primórdios, mas o tema se tornou central quando surgiu o conceito de indivíduo com a Revolução Francesa. O amor, no entanto, sempre foi tratado como uma ideia, como conceito imanente, como algo abstrato que paira como ideia. É contra isso que se volta o romance Um Amor, de Sara Mesa.
O livro conta a história de Nat, uma tradutora que, após passar por problemas em sua cidade natal, decide se mudar para uma pequena casa em uma área rural, uma espécie de lugarejo que lhe daria o conforto necessário para trabalhar. Ao chegar lá, porém, ela encontra algumas figuras peculiares que vão traçar seu destino na região: o proprietário de sua casa, um homem sisudo e ameaçador, um casal de vizinhos com filhos, um forasteiro como ela com quem trava amizade, e um homem mais velho, conhecido como “alemão”, o homem que vira o alvo de seu “um amor”.
A história desse “um amor” é curiosa: Nat estava com goteiras em sua casa, mas não conseguia resolver isto com o proprietário. Andreas, o tal alemão, um dia lhe faz um pedido curioso: ele estava muito tempo sem mulher, se ela lhe deixasse ‘entrar nela’, ele consertaria o teto. Naturalmente, ela rejeita, mas, após refletir, resolve aceitar. Surge, assim, a história que dá título ao livro. Surgeo “um amor”.
O livro, que foi considerado pela crítica espanhola como o “melhor romance de 2020”, tem toda a narrativa contada da perspectiva de Nat. Há então uma proximidade com as reflexões que ela faz em relação a ceder ao pedido de Andreas Em um primeiro momento, ela entende essa troca de sexo como algo entre o prazer, o sentido, o desejo e o nojo:
“Que no sexo não há zona intermediária entre o prazer e o nojo: se não havia sentido nojo, então estava claro que havia sentido”.
Um elemento que se destaca na descrição do ato sexual propriamente dito, comum à literatura de Milan Kundera, é a leveza, a lentidão:
“(…) ela ainda sente o calor entre as pernas, um calor muito mais mental do que físico. Embora tudo tenha sido rápido, a sensação que persiste é a de lentidão. Como explicar isso?”
A partir daí, o que temos é um despertar do corpo dela em relação ao dele. Um despertar do sexo, sim, em princípio, mas aos poucos vai se formando aquilo que chamamos de amor. Mas… ela deveria repetir o gesto, agora sem a troca por favores? Para ela:
“Mesmo que ele propusesse um novo encontro com as mesmas premissas seria muito diferente, pois a pele tem memória, e repetir é se aprofundar, e a última coisa que ela quer agora é se aprofundar.”
O fato de Andreas ser aparentemente um sujeito simplório do campo, um homem rústico que conserta coisas e tem um passado misterioso, acaba se tornando uma espécie de espaço de prazer e investigação para Nat. Mas os silêncios e as elipses de Andreas se transformam, para ela, em uma obsessão.
A forma unilateral da narrativa faz com que o pouco que sabemos desse homem seja, também, um lugar de desejo de descoberta para quem lê, como se fôssemos também parte do tesão de Nat por esse amor que surge do nada. Porém, aos poucos, vamos nos afastando dessa narradora para perceber nela os erros que vão sendo cometidos na relação de ambos. Será que Nat se enganou? Será que não haveria nada para amar naquele homem?
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Eis que então este “um amor” vai se desfazendo, na medida em que é construído por Nat a partir de uma imagem estereotipada, preconceituosa e distanciada do que seria aquele homem simples. No fundo, ele vai se mostrando muito mais complexo e denso, o que traía a imagem que ela criou sobre ele. Assim, o amor sob as regras que ela havia criado se tornava praticamente impossível:
“Foi atraída pela imagem que havia construído dele (…): um homem do campo, sem possibilidade de mudança, que há muito tempo – ele mesmo disse isso! – estava sem uma mulher. Um homem que havia perdido a capacidade de seduzir – se é que alguma vez a teve.”
Temos, então, “um amor” que não pode se dar, um amor romântico idealizado na cabeça de quem ama, mas impossível na prática pela realidade de quem somos. Nossos traumas, nossos dramas, nosso passado, tudo contribui para que o amor não seja simplesmente algo que se sente, mas algo que se constitui historicamente, por meio de processos sociais, raciais, políticos, históricos e, por que não,biológicos.
Por fim, adentramos na história de Andreas, uma trajetória atravessada por fugas, refúgios e sobrevivências. Quando perguntado sobre sua origem, afirma que sua família:
“(…) era curda, do norte do Iraque. Sendo muito jovem, foi forçado a fugir de uma guerra – uma das muitas – e teve que ir pro exílio na Turquia a pé, andando por dias e noites com um bebê – ele – nos braços.”
Diante disso, Nat se sente sozinha e mesquinha diante de seu “um amor”. Cabe a ela processá-lo, entender que pode ter sido um engano como, talvez, deve ser todo amor. Realmente, em “Um amor”, Sara Mesa escreve um dos melhores romances que li este ano. E o amor…o amor é sempre trágico, nasceu para dar errado e só entendemos que existe quando o perdemos.
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