Em tempos ainda nebulosos como os nossos, em que é possível vez ou outra respirar fundo ar puro, mas com uma fumaça ainda rondando, precisamos urgentemente de heróis nacionais e figuras inspiradoras. Vivemos também tempos de reconhecimento e resgate de histórias da nossa História. É nesse contexto dúbio que se torna quase obrigatório o documentário “Empate”, sobre um brasileiro muito inspirador: Chico Mendes.
“Empate” é o nome dado à resistência de seringueiros nas décadas de 1970 e 1980 contra os latifundiários, muitos deles vindos do Sul e Sudeste e empoderados pela ditadura militar, que queriam ocupar ilegalmente a terra que garantia a subsistência de quem ali extraía látex. É isso que nos conta um card bastante didático no começo do documentário.
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O documentário é dividido em três partes: Varadouros da Memória, Fazedores de Deserto e Adjunto de Luta. A primeira parte localiza e colhe depoimentos de velhos companheiros de luta de Chico Mendes; a segunda trata dos pecuaristas que invadem as reservas extrativistas e lá colocam seu gado; a terceira, da organização efetiva da resistência, através de assembleias e sindicatos.
O ativista-seringueiro – ou seringueiro-ativista, aqui está um dos casos em que a ordem dos fatores não altera o produto – que ia “de mãos abanando”, como conta o companheiro Sabá, deixou como legado o ensinamento: é possível trabalhar e ao mesmo tempo preservar a floresta. Para além disso, virou nome de rua, palavra de ordem (“Viva Chico Mendes”), inspiração para música. Sua luta permanece viva naqueles que o conheceram e naqueles que nele se inspiram. Não é à toa que o documentário acaba com uma marcha de companheiros entre uma floresta preservada e uma desmatada: presente e possível futuro.
Conversamos com o diretor de “Empate”, Sérgio de Carvalho:
É inevitável falar da sua transição do premiado “Noites Alienígenas” para este documentário, mas o caminho foi inverso: o documentário começou a ser gestado antes do longa de ficção. Quais foram os elementos que você trouxe de “Noites Alienígenas” para finalmente realizar este projeto?
É interessante essa relação entre Noites Alienígenas e Empate, porque, de fato, o documentário começou a ser gestado antes do longa de ficção. Ele foi filmado antes de Noites Alienígenas, mas está indo para o circuito comercial só agora, em um momento muito oportuno: no mês em que Chico Mendes completaria 80 anos. Além disso, diante dos desafios atuais das mudanças climáticas e do desmatamento acelerado, acredito que nunca foi tão urgente falar sobre a Amazônia e divulgar o legado e as ideias de Chico.
Sempre vi as linhas entre ficção e documentário como algo muito tênue. Em Noites Alienígenas, por exemplo, trabalhei com atores sociais, pessoas sem experiência prévia, e tudo foi filmado em locação, com diálogos frequentemente improvisados e uma câmera que seguia os personagens, criando uma linguagem que flertava com o documental.
Já em Empate, apesar de ser um documentário, seguimos o caminho oposto: buscamos construir um falso observacional, com muitas marcações dos personagens, uma mise-en-scène cuidadosamente ensaiada e uma busca constante por naturalidade nos encontros e nas falas. A paisagem amazônica, com toda sua força e presença, também assumiu o papel de personagem, tanto em Empate, em relação à floresta e às áreas de desmatamento quanto em Noites Alienígenas, mostrando uma Amazônia urbana.
Por fim, embora sejam filmes de linguagens diferentes, os dois compartilham muito na maneira como foram pensados e dirigidos. Ambos partem de um olhar que mistura o íntimo e o coletivo, o humano e a paisagem, em inteira relação com os atores e personagens.
Há espaço para reportagens antigas, para tomadas da floresta devastada e para cenas cotidianas algo longas com os seringueiros. Você diz que encontrou o ritmo narrativo na mesa de edição com a montadora Lorena Ortiz. Como foi esse processo, em especial escolher o que deixar de fora?
Lorena Ortiz, a montadora de Empate, foi fundamental para o resultado do filme, com sua sensibilidade e referências do cinema latino-americano. Ela é colombiana, vive no Brasil e morou alguns anos no Acre, o que trouxe um olhar muito especial para o projeto. Esse foi o primeiro longa que Lorena montou, mas já tínhamos trabalhado juntos na série documental Nokun Txai, o que mostrou que temos uma sinergia criativa enorme, assim como foi minha diretora assistente em Noites Alienígenas. Essa conexão foi essencial para enfrentar os desafios da montagem.
A montagem de Empate foi particularmente desafiadora porque, ao lidar com uma figura como Chico Mendes, cuja luta foi coletiva e envolveu milhares de pessoas, o primeiro e mais difícil recorte foi decidir quem entraria no documentário. Esse dilema atravessou todo o projeto, desde as filmagens até a montagem: quem filmar e, mais ainda, quem manter no filme? Cada um dos companheiros e companheiras de Chico tem uma grande importância histórica, e todos são personagens incríveis por si só.
Na sala de montagem, fomos descobrindo uma linha condutora que não estava totalmente clara no roteiro inicial. Aos poucos, a narrativa emergiu: o foco recaiu sobre aqueles que hoje continuam sendo ameaçados por fazendeiros e cuja luta ainda persiste, mesmo 30 anos depois. A proposta de Lorena foi essencial nesse processo. Com todos os personagens que filmamos – mais que o dobro dos que aparecem no corte final – ela conseguiu destacar aqueles cujas histórias se interligavam em mais de uma sequência, criando uma narrativa coesa.
Lorena também teve um papel importante no ritmo do filme. Mesmo nos momentos contemplativos, cada escolha foi feita com uma função narrativa ou reflexiva. As paisagens amazônicas e o material de arquivo, por exemplo, não foram usados apenas como ilustração ou descrição, mas como pontos de reflexão que dialogam diretamente com a narrativa. Cada elemento, seja uma tomada da floresta devastada ou uma cena cotidiana mais longa, foi pensado para contribuir ativamente para a história que queríamos contar. Essa colaboração foi essencial para trazer à tona o equilíbrio entre o íntimo e o coletivo, entre o passado e o presente, que define Empate.
As gravações foram realizadas entre 2017 e 2018. Muita coisa aconteceu desde então. Quais os impactos da pandemia e do governo Bolsonaro na vida dos seringueiros?
As gravações de Empate ocorreram entre 2017 e 2018, em um período já marcado por tensões políticas e sociais intensas. Mas foi só com o passar do tempo, e especialmente com a chegada do governo Bolsonaro, que entendemos o impacto profundo do que estávamos registrando. Uma amiga e grande intelectual amazônica, Karla Martins, que também foi produtora de Noites Alienígenas, descreveu esse sentimento ao assistir um dos cortes finais do filme. Ela disse que sentiu um nó na garganta, como se houvesse um terceiro ato ausente, mas pressentido. Quando o governo Bolsonaro assumiu, ficou claro que esse terceiro ato havia chegado – e com força. O filme, de certa forma, registra o ovo da serpente começando a eclodir.
O governo Bolsonaro abriu as porteiras – literalmente e simbolicamente. As ameaças que Empate aponta se acirraram, tornando-se ainda mais concretas. O senhor João Martins, um dos personagens do filme, perdeu grande parte de suas terras devido à pressão judicial e foi indenizado com valores irrisórios. Nos últimos anos, a Reserva Extrativista Chico Mendes tem sido invadida por fazendeiros e grileiros vindos de Rondônia, trazendo consigo uma cultura incompatível com o extrativismo sustentável. O avanço da pecuária e o desmatamento cresceram de forma alarmante, corroendo o que antes era floresta preservada.
Recentemente, tive a oportunidade de visitar, com Raimundão – um dos personagens mais emblemáticos do filme –, uma dessas áreas invadidas. Foi devastador testemunhar, junto a ele, o tamanho do desmatamento em um local que antes era floresta. Essa situação foi impulsionada por figuras políticas locais, como o senador Márcio Bittar, que, empoderado pelo governo Bolsonaro, defende projetos que buscam reduzir drasticamente as áreas de reserva.
Além disso, os efeitos das mudanças climáticas têm sido devastadores. Este ano, a Reserva Extrativista enfrentou intensas queimadas, escassez de água e grandes prejuízos nos roçados dos extrativistas. Esses fatores refletem tanto o negacionismo climático quanto a ausência de ações políticas efetivas nos últimos anos.
Embora o governo atual tenha sinalizado mudanças significativas na política ambiental, o estrago dos anos Bolsonaro pode ser irreversível sem ações políticas arrojadas e fiscalização rigorosa, especialmente para conter os forasteiros que chegam à reserva derrubando árvores e trazendo gado. Empate, mesmo sendo um filme anterior a tudo isso, ecoa essas ameaças e funciona como um alerta para os desafios que ainda enfrentamos na preservação da Amazônia e no legado de Chico Mendes.
Numa cena em que seringueiros veem um vídeo deles junto aos capatazes dos latifundiários, um deles narra que “foi com eles que a gente dialogou”. Você acredita que o diálogo é a solução, mesmo com fascistas e barões do gado que hoje nos ameaçam e ameaçam os seringueiros?
O diálogo foi uma das ferramentas mais poderosas na luta dos seringueiros, especialmente sob a liderança de Chico Mendes. Ele tinha uma habilidade rara de articular e comunicar suas ideias, com uma voz mansa, mas extremamente firme, que nunca cedia em seus princípios. Com seu jeito, Chico levou uma causa local – que mal aparecia na mídia regional, salvo iniciativas como o jornal Varadouro – para o mundo. Ele dialogou com agentes políticos do Brasil, trouxe figuras como Fernando Gabeira, a atriz Lucélia Santos, o cineasta Adrien Cowell e o jornalista Edilson Martins, e tantos outros, para a causa, chegou ao Senado Americano e até mesmo aos executivos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), nos EUA.
Com este encontro com o BID, ele conseguiu uma suspensão nas obras da estrada financiada pelo banco, que ligava Rio Branco à fronteira com a Bolívia, frente aos impactos que ela vinha causando nas comunidades tradicionais e na floresta, e que só foi retomada após medidas de mitigação dos impactos ambientais e sociais. Esse foi talvez o maior empate de Chico, e também o momento em que ele passou a ser visto como uma grande ameaça pelos poderosos da época. Como um seringueiro convenceu o BID a parar o milionário financiamento internacional?
Ainda assim, é importante lembrar que o diálogo nos Empates tinha limites claros. Não era com os fazendeiros que ele acontecia diretamente, mas com os homens da região, muitas vezes antigos seringueiros cooptados pelos latifundiários, que faziam a derrubada. Esses encontros não eram isentos de tensão: nos primeiros Empates, idealizados por Wilson Pinheiro, assassinado em 1980 também por fazendeiros, era comum os seringueiros levarem espingardas e facões. Mas, sob a liderança de Chico, o confronto armado foi evitado de forma consciente. Ele sabia que a medida de forças era extremamente desigual. Os fazendeiros tinham a polícia, os políticos e recursos ao seu lado, além de um poderio armado que poderia transformar qualquer confronto em um massacre real ou em prisões coletivas dos seringueiros. Essa realidade fez com que Chico adotasse o diálogo e convencimento como tática principal.
A estratégia de negociação, que se tornou a marca dos Empates, dava resultados. Chico e os seringueiros buscavam convencer aqueles na ponta – homens com histórias e misérias semelhantes às deles – de que obedecer às ordens dos patrões prejudicaria tanto a floresta quanto suas próprias comunidades. Essa abordagem, muitas vezes, funcionava, e Chico conseguia evitar derramamento de sangue enquanto fortalecia a causa.
Essa habilidade de Chico de buscar aliados, ampliar os gritos da resistência e encontrar alternativas sempre me inspirou. Contudo, o contexto atual é outro. O avanço da extrema direita, das fake news, do discurso de ódio e da criminalização dos movimentos sociais cria um cenário em que o diálogo parece inviável. Hoje, não há brechas para o debate honesto com aqueles que disseminam desinformação em massa.
Os seringueiros do tempo de Chico evitavam o confronto armado porque compreendiam que a vulnerabilidade estava do lado deles. O que enfrentamos agora, globalmente, exige outra resposta. Ainda não tenho clareza sobre qual é o melhor caminho, mas sei que ele precisa ser urgente e coletivo. O ódio e as ameaças precisam ser combatidos em várias esferas – judicial, comunicacional e de conscientização. E, sobretudo, precisamos agir rapidamente diante da ameaça real das mudanças climáticas, frente ao avanço do negacionismo, que agravam ainda mais o cenário de devastação.
Empate documenta um momento crucial da nossa história, mas também serve como um alerta. Precisamos aprender com o legado de Chico Mendes e os seringueiros, adaptando suas táticas ao nosso tempo, para resistir e lutar por um futuro em que possamos, finalmente, equilibrar justiça social e ambiental.
Veja o trailer de “Empate”: