Democracia Canibal: raça e representação na literatura das Américas, é um livro da professora de inglês e presidente da pós-graduação da Universidade da Pensilvânia e pesquisadora de literatura comparada, literatura africana, estudos de gênero, sexualidade e mulheres, Zita Nunes. A obra, publicada no Brasil pela editora Fósforo no ano de 2024, aborda a ideia moderna de antropofagia na formação da cultura e identidade nacional. Tal feito tem como plataforma de decolagem a metáfora do canibalismo, em especial sua versão forjada pelo movimento modernista brasileiro, para abordar a formação das identidades nacionais e raciais nas Américas.
Em Democracia Canibal, Zita Nunes desmistifica a ideia de democracia racial, pautando-se em produções literárias, principalmente, mas também seus movimentos políticos e manifestações artísticas sucedentes. Por que, claro, a arte traduz ideais mais do que se imagina. Mesmo que inconscientemente, a arte é sempre política e intencional.
Segundo a autora, dois conceitos foram explicitamente articulados no Brasil durante as primeiras décadas do século 20, e também nos discursos estadunidenses da época, sobre raça e democracia: o canibalismo como metáfora cultural e a democracia racial como ideal cultural.
Absorver o útil de outras culturas e criar uma harmonia racial e cultural entre os povos.
Para a autora a noção de uma democracia racial implica a imposição da unidade homogênea, em que todos são ‘iguais’ diante dos princípios democráticos, mas uma unidade composta de uma grande mistura, que seria a miscigenação brasileira. Nesse sentido, Nunes entende como impossível haver uma harmonia tal como a buscada. Na falsa intenção de se construir uma democracia racial, uma raça se sobrepõe à outra, engolindo-a. E essa é a grande contradição desses dois ideais que circunscrevem arte, literatura e política na época, e que ainda reverberam hoje em dia.
O que é posto em xeque aqui é a visão moldada sobre negritude, miscigenação e identidade diante desses conceitos.
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Na obra, a ideia do canibalismo é base e limite para compreender o que se tem de mito na noção de uma democracia racial. Segundo Nunes, a contradição da ideia de uma democracia racial – de um ideal de inclusão e de harmonia de cultura e raça – é estruturada e explicada pela metáfora do canibalismo.
A metáfora do canibalismo, principalmente em sua versão de “antropofagia cultural”, do movimento modernista brasileiro escancara toda a maneira como as identidades nacionais e raciais foram forjadas nas Américas. Enquanto olha para o lado da Europa, a proposta previa um questionamento radical e uma reformulação das hierarquias engendradas pelo colonialismo. Mas, enquanto observa internamente, em relação às populações negras, mulatas e indígenas do Brasil, a antropofagia cultural oferece um meio de criar uma identidade nacional homogênea e estável: preservar as raízes do Brasil. Mas, segundo Nunes, nesse processo, é inevitável que “o acolhimento de um outro para preservá-lo exige paradoxalmente que ele seja permanentemente perdido como outro”.
Encontramos, então, a noção de “resíduo”: tudo aquilo que não fora contemplado no processo de consolidação de uma identidade, questões deixadas de lado no debate modernista de deglutir da cultura europeia para a formação de uma cultura brasileira. O resíduo seria, portanto, esse espectro que assombra a ideia de conciliação e mina as ideologias de democracia que defendem ter solucionado o problema racial
Nisso, o processo de embranquecimento da nação se escancara, mesmo que de maneira representativa, e os negros, que se entendem como negros, se tornam resíduos descartados desse processo de absorção. A negritude, em nível discursivo e representacional, não tem lugar em uma democracia racial que não seja de descarte e margem, pois sua integração nunca foi completa, nem sequer teve a intenção de ser ou foi resistida pela própria negritude, segundo Zita.
A democracia racial oferece a promessa de inclusão, cordialidade e ausência de ressentimento por meio de identificação com o conceito de embranquecimento. Em outras palavras, a identificação giraria em torno do desejo de branquititude, e aqueles que se recusam a essa identificação ficam relegados a resíduos. Mesmo quando a ênfase na branquitude não está mais em primeiro plano, como no discurso sobre a democracia racial, suas raízes nesse modo de pensar são aparentes quando se trata do excluído
No livro, Zita Nunes explicita o problema do sonho da inclusão e homogeneidade em sociedades democráticas multirraciais, em que a desigualdade sempre vai pertencer à igualdade, em que a classe dominante sempre vai incorporar ou absorver a outra e em que o desigual não é tratado igualmente.