Um homem ouviu de um mensageiro a seguinte profecia: “você matará o seu pai e se casará com a sua mãe”. Mesmo “Édipo Rei” sendo escrita por Sófocles uns 2.400 anos atrás, a tragédia choca até hoje. Será mesmo? Em “Édipo Rec”, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, o grupo Magiluth pegou a base desse texto não para responder a pergunta, mas para repeti-la e propor um jogo com a plateia.
Em vez dos três sinais, Erivaldo Oliveira (interpretando o Coro) surge do lado de fora, no topo de uma escada, usando um vestido brilhante curtíssimo e bota cano alto. Ao anunciar uma festa, esse personagem também vai nos avisar que a vida é “decepcionante” batendo seu leque para guiar o público pelas escadas “enquanto elas ainda existem”.
Lá dentro, o palco se transforma em uma balada comandada pelo DJ Édipo (Giordano Castro) que toca Rihanna, Pablo Vittar, Grelo e MC Poze do Rodo. Tirésias (Pedro Wagner), o cego vidente, Jocasta (Nash Laila), Creonte (Mário Sergio Cabral) e o mensageiro (Lucas Torres) recepcionam as pessoas que topam ficar na pista de dança. Há a opção de subir ao camarote para assistir ao espetáculo sentado.
Bruno Parmera fecha o elenco interpretando um cinegrafista. E o personagem, de certa forma, encampa um vidente moderno. Aquilo que Tirésias significa à tragédia de Sófocles, na releitura, o videomaker emula um tipo avesso de profeta que não vai prever o futuro, mas espetaculariza-lo. Ao longo da montagem, a câmera do celular de Parmera servirá tanto para gravar a verdade, quanto para editar a ficção.
O jogo é bom. E o grupo usa essa chave para abrir várias das portas do teatro pós-dramático de Lehmann, trazendo à cena esses dispositivos como personagens para inverter os pólos: “em vez da midiatização do teatro, faz-se a teatralização das mídias”.
Jornalista, escritor e crítico literário Bruno Inácio lança livro “De repente nenhum som” sobre a solidão humana.
Os “vestígios da presença” provocados pela dualidade entre o ator em cena e no vídeo distendem a imaginação da plateia, e criam um exercício curioso de tempo e espaço. Lehmann, inclusive, escreveu que o “ator é a perturbação da imagem” e botou a representação em segundo plano porque no teatro o vale tudo mesmo está na situação, no comportamento, na troca entre quem vê e quem faz. Isso está super conectado com a filosofia de Vilém Flusser, um teórico tcheco-brasileiro que viu na invenção da máquina fotográfica uma ruptura histórica.
Depois da câmera, o homem, que antes criava imagens com as mãos, transferiu essa capacidade para uma “caixa preta” que ninguém sabe como funciona. Em seguida, surgiu o cinema e jogou mais lenha na fogueira da reprodução incessante das imagens. Depois, a TV entrou no jogo. Mas foi a chegada do celular que desorganizou a coisa como jamais se viu. Não importa qual seja a tragédia, nós iremos filmá-la. Seja ao ver um avião da Voepass despencando do céu ou mísseis arrasando Gaza, seja um assassinato no Recife ou um tiro da PM na favela, caixões empilhados durante a pandemia, Mariana sendo arrastada por um mar de lamas ou a cadeirada de José Luiz Datena em Pablo Marçal – o rei dos cortes – durante um debate à prefeitura em plena democracia… toda imagem se transforma ou se transformará em espetáculo. Flusser batizou esse conceito de “pós-história” e teorizou sobre as coisas acontecerem justamente para serem transformadas em imagens, como se os eventos históricos girassem em função das câmaras e não mais para modificarem o mundo. No palco do Magiluth, um dos modos de atravessar a primeira porta entre as ideias dos dois teóricos e o texto de Sófocles pode ser assim: caso Édipo existisse hoje, ele seria um rei que ataca de DJ ou um influencer tirânico?
Para abrir as possibilidades de resposta – ou não – o coletivo chamou o diretor Luiz Fernando Marques para unir os takes. Marques já trabalhou com o grupo em “Estudo Nº 1 – Morte e vida”, onde a espetacularização do trabalho excessivo se relacionava com o fim de uma ilha no meio do mar. Logo depois, em “Estudo Nº 2, Miró”, o grupo se voltou para o jeito de se tratar um personagem, no caso, o poeta Miró, novamente distendendo tanto o uso dos dispositivos quanto a temática da espetacularização até mesmo da linguagem.
Em “Édipo Rec”, o diretor convidado faz uma montagem muito segura na organização de cada elemento e referência para irrigar o constrangimento da plateia com a verve de um sádico. Para mim, passar a primeira hora do espetáculo em pé, em meio a uma balada caótica, ao mesmo tempo em que a encenação se armava com tanto vigor, foi experimentar o teatro como acontecimento, como uma troca mútua entre quem o faz e quem o assiste.
Na minha sessão, foram impagáveis os momentos onde o Coro estimulou a “não-monogamia” geral beijando quem se dispunha a beijá-lo. Igualmente impactante foi o monólogo de Pedro Wagner – um ator capaz de ir do agudo ao grave sem desatino – descendo às escadas do teatro em um misto de vilania, afetação e deboche. Ou ainda a sacada genial do figurino de Chris Garrido em usar as trocas de camisetas de Creonte como uma tomada para eletrificar as sensações de Édipo e tensionar a plateia. A costura com “Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, é ótima. E a trilha sonora injeta muita ironia na encenação. Em uma história onde o filho casa-se com a mãe, “Toda forma de amor”, do Lulu Santos, virou um climão… E está tudo gravado. Só que isso serve de alguma coisa? A reação captada em cena não seria natimorta?
Na segunda parte, o público foi expulso do teatro pelo cinegrafista de Parmera. Novamente, Erivaldo Oliveira surgiu no topo da escada. O público então retornou ao teatro porque a história se repete como tragédia ou como farsa. Aqui, a dramaturgia de Giordano Castro se apoia mais no texto-base e abre cicatrizes nas palavras de Sófocles. Assim, a inversão proposta pelo Magiluth, impondo a festa antes do enterro, mostra um horror no amor e até uma passionalidade com ares de ancestralidade, como se na raiz do destino sempre existisse um homem para botar tudo a perder em nome de uma sentimento “super nobre”. A repetição fecha-se em si mesma como condenação.
Nesse contexto, “Édipo Rec” me lembrou de outro trabalho do coletivo. “Dinamarca”, feita no calor do golpe de 2016, costurava alguns espelhos por dentro de “Hamlet” para nos botar diante da corrupção e loucura daqueles tempos. Agora, Mário Sérgio Cabral, Erivaldo Oliveira e Giordano Castro movem-se de maneira parecida com seus personagens de “Dinamarca”. É tudo intenso, esbaforido e ao olharem suas encarnações passadas, onde também acontecia uma festa, o trio deixa mais pesado o eterno retorno das coisas. Em 2019, quando assisti a peça, estávamos na aurora do Governo de Jair Bolsonaro, saídos de dois anos liderados por Michel Temer. Havia uma indignação muito latente e um temor pelos direitos conquistados, principalmente pela classe artística. Cinco anos depois – que pareceram cinco séculos – a veia política do grupo permanece dilatada. Todo o diálogo entre Creonte e Édipo, e a releitura envolvendo o mensageiro, traçam um panorama amargo do que vivemos, aceitamos, registramos e ignoramos.
Se os governos mudaram, as tragédias não pararam. E nem vão. Mas viver em um mundo sem sofrimento não deve ser esperança para quem se alimenta de tragédia, comédia, farsa, paródia, musical, besteirol, vaudeville ou cordel. Há pelo menos uns 2.400 anos, o enredo do Teatro não muda: a felicidade é enganosa. Politicamente, esse momento de aparente tranquilidade também é ardiloso. Por isso, o antídoto para tanta alienação gravada, editada, postada e viralizada ainda deve ser a contracenação.
Já perto do fim da peça, o papo entre o cinegrafista e o Coro, embora use elementos contemporâneos para ficar quase didático, não mexe na fala escrita por Sófocles. Em Tebas, Recife ou em terra estrangeira, a próxima grande tragédia vai acontecer. Vamos nos chocar a ponto de reagir ou bateria do seu celular aguenta mais um pouco?
FICHA TÉCNICA
Criação: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Giordano Castro
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral, Nash Laila e Pedro Wagner
Design de Luz: Jathyles Miranda
Figurino: Chris Garrido
Trilha sonora: Grupo Magiluth, Nash Laila e Luiz Fernando Marques
Cenografia e montagem de vídeo: Luiz Fernando Marques
Cenotécnico: Renato Simões
Vídeo Mapping e Operação: Clara Caramez
Captação de imagens: Bruno Parmera, Pedro Escobar e Vitor Pessoa
Equipe de Produção de vídeos: Diana Cardona Guillén, Leonardo Lopes, Maria Pepe e Vitor Pessoa
Produção: Grupo Magiluth e Corpo Rastreado